A mala  

Pilar relutando em entrar no seu ateliê? Seu lugar de voos criativos, da concretização de sonhos e desejos… Muito estranho. Ela ultimamente chega a sentir náuseas só de se imaginar lá dentro.  Há mais de uma semana vem deixando o que quer que precise fazer lá dentro para o dia seguinte. Mas não há mais dia seguinte… O apartamento foi vendido, quase todos os cômodos foram esvaziados, as coisas a serem mantidas já estão encaixotadas, prontas para a mudança. Só falta o pequeno quarto.

Não quero entrar, ela estará lá me encarando. Está aqui há dez anos. Não me acostumo com isso. Entro nesse quartinho e a vejo rígida, no controle. É a primeira coisa que vejo! Me perfura, me acusa. De quê? Antes de ela chegar, eu adorava ficar no meu pequeno grande mundo de oito metros quadrados. 

  Logo que  Pilar, marido e filhos se mudaram para o espaçoso apartamento, há quarenta anos, o pequeno cômodo se chamava “quarto de empregada”. Sim, naquele tempo, as domésticas dormiam no serviço, folgavam de quinze em quinze dias e deleitavam seus patrões com jantares bem postos à noite e café da manhã servido na sala de jantar! Uma discreta campainha era usada para que se aproximassem e satisfizessem mais ainda os patrões – mais água ou gelo, a sobremesa, o moinho de pimenta,  laranja cristalizada com o cafezinho…

Hoje em dia, não há mais nada disso na casa de Pilar. O café da manhã acontece na mesa da cozinha, preparado e servido por ela ou pelo marido. O casal acorda cedo e a pessoa que trabalha para eles chega às 9 e se vai às 17 horas. Não mais os jantares de outrora mas sim os menus leves e saudáveis recomendados aos idosos: sopas ou saladas com grelhados.  Quem muitas vezes os prepara é Pilar, nem sempre com boa vontade, e os serve na cozinha mesmo. O nobre almoço, feito pela contratada, ainda é servido na sala de jantar com pompa e circunstância: as belas toalhas de linho se abrem acompanhadas de guardanapos também bordados, a louça inglesa e os talheres de prata finalizam o conjunto — tudo nos trinques.  

Confortavelmente sentados, o casal recebe tudo nas mãos, não se levantam para nada. Glória das glórias! Mas nada de tocar a sineta, a atual funcionária não aprova, sente-se humilhada. É, a moça foi firme ao falar do seu desagrado, de se sentir ofendida. Pilar não discutiu, aceitou a queixa, mesmo achando sumamente desagradável ter que quase berrar para ser atendida durante o almoço. A campainha é tão mais prática! Campainhas e sinetas são vozes querendo fazer algum sentido. Tudo em vão, só me restou aceitar chamá-la aos gritos. 

Ao ficar difícil contratar empregadas que dormissem no emprego, o quarto reservado a elas passou a ser o ateliê de Pilar. Lá, instalou uma câmara escura onde revelava filmes P&B e ampliava fotos. Passou anos naquele quartinho, usando o tanque da área de serviço como uma extensão do ateliê na hora da lavagem final dos filmes e das ampliações. Lembrou-se disso com tristeza, a fotografia digital acabou com minha câmara escura. 

Pilar entreabriu a porta, mas não entrou. Foi para a cozinha, tomou um cafezinho, comeu um quadradinho de bolo de aipim e voltou para a área de serviço. Respirando fundo, entrou no ateliê. Ficou olhando para tudo. Abriu pastas, viu seus arquivos sobre processos fotográficos, anotações sobre tempos, diluições dos químicos e como usar tonalizantes para aquecer ou esfriar o tom das imagens. Joguei meu tempo fora, devia ter trabalhado mais! E assim foi separando itens. O que seria doado, o que seria vendido, o que seria jogado fora. As caixas lacradas e etiquetadas foram sendo empilhadas na área de serviço. Nesse dia, não houve almoço chique na sala de jantar — as toalhas, a louça fina, os talheres já não estavam mais lá. O marido tinha saído para providenciar o necessário para consertos no apartamento novo e almoçaria fora. Pilar não se deu ao trabalho de comer. 

Com o coração pesado, a cabeça doendo, ela finalmente enfrenta a maleta com fotos de sua mãe. Quando a mãe faleceu, um dos irmãos de Pilar encheu uma maleta, dessas que cabem nas cabines dos aviões, com fotos que tinham sido guardadas pela velha senhora. Ele tinha a intenção de selecionar e digitalizar as que considerasse mais importantes para a memória de histórias da família. Mas ele faleceu pouco depois, e a maleta acabou nas mãos de  Pilar. Há dez anos a maleta de fotos faz as vezes de sentinela do quartinho – dura e ereta num canto, de olho em tudo, é como Pilar a vê. Como se a maleta estivesse computando o tempo que Pilar deixava de usar o ateliê, abandonando seus sonhos ali depositados. 

Pilar se empolga com o que encontra. Vê carinho nas coisas guardadas, os momentos que a mãe viveu e os que protegeu. São fotos soltas, de vários tempos e mundos — de antepassados que nunca conheceram, da infância e juventude da mãe, do casamento e chegada dos filhos, dos tempos vividos juntos. São personagens, épocas, tempos que podem ficar lado a lado. A fotografia possibilita encontros únicos, ao se romper com o tempo contínuo, sequencial. Várias geografias eliminam as distâncias. Não há cronologia, tudo é aleatório e existe num mesmo tempo — o presente. Pilar viaja nesses tempos, vai a passados longínquos e volta ao presente com emoção, olhos úmidos, saudades. O riso também tem vez e elimina a tensão. 

Pilar fica ali, rodeada por mais de um século de registros de vidas e momentos vividos, completamente alheia ao passar das horas — num ‘não tempo do prazer, do sentir, do imaginar. 

Conto do livro Vermelho

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