Ruínas que ainda respiram…
Quando os muros subiram na Ilha Grande, não era só pedra e cimento que se empilhava. Subia ali uma ideia: a de que o erro se tranca, a de que o castigo purifica, a de que a violência tem hora, lugar e justificativa. Inaugurado no início do século XX, o presídio parecia um mundo à parte, cercado de mar por todos os lados. Mas o que se confinava ali não ficava ali.
Vieram os presos políticos, os comuns, os esquecidos. As grades, os gritos, os castigos que o Estado não estampava em papel eram gravados na carne. O lugar transformou-se em campo de experimentos sociais onde a ideia de dignidade era um luxo inalcançável. Quem entrava raramente saía inteiro.
Na década de 1970, sob o peso da ditadura e da impunidade institucionalizada, a Ilha tornou-se espelho, um retrato brutal e simbólico de um Brasil que castiga, marginaliza e raramente reabilita. O que se via ali era reflexo do que acontecia pelo país: tortura como método, silêncio como regra, medo como rotina. E ali dentro, formou-se o que viria a ser o embrião do Comando Vermelho – não por acaso, mas por um caldo social de abandono, brutalidade e sobrevivência.
Quando a implosão chegou, em 1994, houve quem aplaudisse. Parecia um fim. Mas o que explode de concreto nem sempre desaparece de verdade. O que floresceu ali – a lógica da punição que exclui, o cárcere como depósito humano, a brutalidade institucional – não morreu nos escombros. Apenas mudou de CEP.
Hoje, os presídios continuam sendo ilhas: isoladas, superlotadas, violentas. A diferença é que estão no continente. O mesmo espírito que habitava a Ilha Grande ainda respira nas penitenciárias e celas abafadas de todo o país, nos presídios femininos esquecidos, nos centros de detenção juvenil. A mentalidade que o ergueu não foi implodida.
As ruínas da Ilha Grande se cobriram de mato. A ilha passou a ser memória, local de repouso e veraneio, atração turística. Mas o cenário social que a construiu continua sólido como rocha: a crença de que prender é resolver, que punir é educar, que o erro do outro nos absolve da nossa omissão.
As ruínas continuam respirando. Dentro e fora dos presídios.
7 comentários
Lucia Koury
Gostei muito. Diferente do que vc escrevia. Uma verdade que eu não sabia. Sinto como uma constatação. Sem raiva, sem medo, sem dor nem emoção.
Monica Lobo
Forte e verdadeiro Lindamente escrito Ruth obrigada por dividir Vou adorar ler
Anna Carolina Lo Bianco
Um texto pequeno que toca, de forma precisa e contundente, na longa história da violência neste país, onde um “inimigo” se aniquila. E de várias maneiras. Não temos pena de morte, mas estamos entre os três países com a maior taxa de homicídios do mundo. A punição que recebemos é agora a de nos matarmos uns aos outros. Depois de séculos de abandono, de descaso e de brutalidade.
Ana Lidia
Bem lembrado! Tempos que se repetem! Hoje ainda existe tanta violência, insegurança e medo.
Muito bem descrito os momentos vividos nessa ilha Paradisíaca. Parabéns!
Fernanda das Neves
Escrita contundente ,direta e forte mas de uma simplicidade elegante como sempre é a materia da Ruth.
Cecília
Adorei. Verdadeiro. Roberto pescava de mergulho na Ilha Grande. Íamos pra lá de barco, não se podia chegar perto, pois sempre aparecia um soldado armado. Ainda bem que isso acabou e todos podem aproveitar a linda ilha. Bjs
Julita Lemgruber
Obrigada querida amiga, irmã, por sua sensibilidade em tratar de um tema que me toca as entranhas. Só uma correção: a prisão nunca, nunca, reabilita. A prisão é punição, tão simplesmente. Um dia as prisões serão abolidas. Quem quiser entender um pouco sobre abolicionismo, a leitura da Ângela Davis é fundamental.