• O touro, o rato e o orbe do caos

    Era uma vez Tino, um rato atrevido que reinava, dentro de uma velha ucha, entre farelos, pães endurecidos, e biscoitos de aniversário esquecidos. Pequeno no corpo, mas otimista em excesso, tinha um plano ousado: humilhar um touro da fazenda vizinha — por pura diversão.  Não um qualquer. Um de tourada, com nome de remédio para ressaca: EL Malacara. O bicho era enorme, musculoso, e quando opado, dobrava de tamanho. Valia uma fortuna em euros. Diziam que ao pisar na arena, o chão pediria arrego. Tino ouviu isso e, ao invés de correr, fez uma aposta consigo mesmo: duas cascas de banana e um bombom vencido que eu faço esse boizão…

  • O preço da correção

    No hall de entrada de um edifício, uma moradora, à espera do táxi, observa um rapaz se aproximar do porteiro e fazer um elogio à “empregada” da patroa que o esperava na calçada. A mulher o corrige, sem perda de tempo: — Funcionária doméstica, por favor. O rapaz se volta, surpreso. Desconcertado, se pergunta: o que eu disse de errado? Tinha que falar de forma mais elegante? Doméstica e funcionária…não é tudo a mesma coisa? O fato é que muitos acreditam que o politicamente correto nasceu do respeito. Pode ser. O grande problema é como vem sendo usado: cheio de manias de pureza. É uma cartilha que poucos sabem ler.…

  • O combate dos tempos

    Entrei no hospital com medo. Dores me avisavam que algo grave acontecia. Eu sabia que encontraria ajuda, mas atravessar aquela porta significava entregar minha autonomia. A urgência anulou o tempo para negociações ou acordos. Teria que enfrentar anestesia, cirurgia, e despertar em outra realidade: a de ver meu poder de decisão entrar em suspensão.  Aceitar que dependeria de outros para tudo era inevitável. Um corpo habituado à independência ficou imóvel, ligado a fios, tubos, soro, acesso venoso e que tais. A pressa que eu conhecia e administrava, minha velha companheira, batia contra um muro: o tempo real do hospital—lento, metódico, impessoal e descontínuo. É feito de fragmentos. Dormir nunca é…

  • O Sonho não acabou

                  I Depois de te perder, preciso não dormir. Nada aconteceu. O sonho não acabou.              II Te encontro, talvez, num tempo de delicadeza, tempo de te amar devagar,  urgentemente. Urgentemente.             III Há distância entre intenção e gesto. Não pode ser assim. Tenho tantos planos… O sonho não acabou.             IV Bem sei, amor, é certo o meu receio. Sei que você pode, só basta você querer. Você querer.            V Amor dói, arde sem se ver, ferida que não se sente. Não se desespere. O sonho não acabou.          VI Você pode. Nós podemos. Talvez se consuma o tempo. Não diremos nada. Nada.         VII Ontem, um menino me falou para não ter medo. “Nem…

  • Ruínas que ainda respiram…

    Quando os muros subiram na Ilha Grande, não era só pedra e cimento que se empilhava. Subia ali uma ideia: a de que o erro se tranca, a de que o castigo purifica, a de que a violência tem hora, lugar e justificativa. Inaugurado no início do século XX, o presídio parecia um mundo à parte, cercado de mar por todos os lados. Mas o que se confinava ali não ficava ali. Vieram os presos políticos, os comuns, os esquecidos. As grades, os gritos, os castigos que o Estado não estampava em papel eram gravados na carne. O lugar transformou-se em campo de experimentos sociais onde a ideia de dignidade…

  • Voz Engasgada

    Odeio quando me calo e a garganta pesa como se carregasse pedras. Odeio o silêncio que me cresce por dentro feito mofo. A oportunidade vem, linda, inteira, pousa na minha frente como um pássaro — e eu não movo um músculo. Só observo, muda. Me odeio por isso. Na infância, eu sabia as respostas. As palavras estavam ali, alinhadas, esperando. Mas o peito apertava, a mão suava, e a voz sumia. Uma colega dizia o que eu também sabia, e ganhava sorrisos. Eu ficava com a mão erguida por dentro. Ninguém via. Na adolescência, doía ainda mais. O corpo crescia, o peito se armava em curvas, mas por dentro eu…

  • Cuide-se, cuidem-se

    Com a recente Pandemia, tudo sobre porque permanecer, de livre e espontânea obrigatoriedade, afastada do resto do mundo me abandonou. Suspender o regime de obediência cega aos cuide-se e mais cuide-se não foi uma escolha. Foi consequência de acontecimentos terríveis — um sobrinho na UTI com recaída da pneumonia. Não era Covid, me animei. Há tratamento, ele é jovem, vai ficar bom. Mesmo assim, me internei no lugar da preocupação e do medo. Entremeava esses estados com lembranças, orações e esperança. Toda uma existência era repassada. Saraivadas de perguntas me atingiam, sem ordem, sem critério — Ele sente muito medo? Está com frio? Melhorou? Como estará meu irmão? Como estará…

  • Amizade Fluida

    Sou a calma, a serenidade das manhãs de verão com crianças mergulhando para ver cavalos marinhos e catar os mexilhões que cozinhariam numa lata de manteiga. Para mim, tê-las perto, rindo e brincando, era um banho de prazer. Não me esqueço da noite em que a amurada ficou apinhada de gente, todos maravilhados com um incrível fenômeno da natureza: plânctons aos milhares brilhando na escuridão. Eu repleto da magia intensa da luminescência bailante. Foi quando uma menina me fisgou para sempre ao mergulhar para reger o espetáculo. Batia as pernas e as mãos, intensificando o fulgor dos plânctons sendo agitados. Rodopiava, se agitava e dizia: mãe, estou acendendo a luz…

  • “Versão Não Autorizada da Adolescente”

    Sou avó que se preocupa com os netos, com o que os atravessa, seus desvios inesperados, as infinitas possibilidades que moldam suas realidades. E, de repente, a adolescente que fui me invadiu. Meu mundo era outro. Também dividido. Dois mundos. Três, com a escola. Seguir regras? Sem problema. Gostava de aprender. Os professores entravam, todos nos levantávamos. Eles mandavam. Se quisesse perguntar algo, levantava a mão, esperava autorização. Havia respeito. Tudo bem — tinha o prazer de ver meu esforço valorizado. Em casa… difícil. Muitas broncas, castigos. Fazia de tudo pra mãe me ver, me notar, agradecer por eu ter lavado a louça… Nada. Porque tanta cara feia? Tanto desamor?…

  • O Que Resta

    Não mais beijos vermelhos a te devorar. São líquidos distantes, que escorrem sem fim, grudam, queimam, te arrancam a pele. O tato sedento a se desmanchar como voz de papel molhado entre teus dedos — e medos. A carne, de avesso sangrento, implora. Berra entre gritos e sussurros num escuro silencioso, fétido, de bafo murcho e pontiagudo que fere. Passas as mãos no corpo em brasa e areia — não mais cobertura lisa, mas poeira quente, feia, que recusa te olhar e exala repulsa. Quase desfaleces. Ela fala em língua de mofo e se veste em cor de ausência. Ainda assim, apesar de maltratada, insistes. Pedes que fique, que te…