Vermelho
— Tri-co-tar! Eu?! “Um grande remédio, … você vai ver como é bom, funciona mesmo” — odeio a voz desse geriatra. Grudenta, um carrapato. Aliviar tensões, bah! A tensão toda passa pra essas drogas de agulhas. Desestressar… Um bosta esse médico. O tempo todo sorrindo. Pra suavizar os diagnósticos? Sei que estou deprimida, ansiosa. Sei que preciso de ajuda. Fui ao consultório pra quê? Ai! Merda, espetei meu dedo … Vamos lá: dez pontos na agulha, ponto malha na ida e ponto avesso na volta. O fio passando pelo pescoço.
Desajeitada, errando muito, Magnólia enfrenta o novo aprendizado. Uns dias pela manhã, outros à tarde, mas, a maioria das vezes, à noite – quando o sono a abandona. Nessas horas seu raivômetro atinge níveis elevadíssimos e o tricô sofre. Já quebrou agulhas, espetou os dedos, embolou o fio. Doem pescoço, ombros e mãos, mas ela persiste. E chega o dia em que seu tricô desliza de uma agulha a outra com facilidade, o ponto mais solto.
Semanas depois, ela já move as agulhas e a lã com total controle e o resultado são pontos uniformes. Uma vez dominada a técnica, tricotar se torna uma sequência de gestos automáticos. Com isso, seus maus pensamentos retornam. A tira de tricô, espalhada pelo chão, encerra frustrações, contrariedades e muita raiva.
Tricotar vira uma reza e Magnólia não consegue parar. De ponto em ponto desfia um rosário de imprecações e queixumes vingativos. Cada ponto do tricô é um ataque às pessoas que ela odeia: o filho mandão, que vive cagando regras; a empregada burra e preguiçosa; o médico cheio de faça assim, não faça assado; e a filha omissa e eternamente boazinha para os outros. Esses nomes se repetem enquanto o tricô se agiganta. Em poucos dias mede cinco metros de comprimento. Ela manda comprar mais novelos.
— Quero ver onde isso vai dar. Vou esfregar na cara do médico, mumificar o imbecil.
Os dias passam, Magnólia não come, não dorme – tricota. As imprecações, cada vez mais agressivas, são como uma droga que libera seus piores sentimentos que, soltos, exigem que Magnólia os manifeste com intensidade cada vez maior. A faixa de lã não para de crescer.
Seus dedos cansados a fazem errar, um ponto, mais um, e mais outro. Grita com raiva, fica de pé sobre a tira de lã que começa a se enroscar em seus tornozelos. Magnólia não consegue sair do lugar. É quando vê seus odiados dentro da sala! O filho de cara amarrada e um vinco profundo entre as sobrancelhas; a filha de costas sem se mover; a empregada de olhar desbotado e pidão; e o geriatra a examinar minuciosamente a longa tira de lã. Todos vermelhos: pele, cabelos, roupas. Da cabeça do médico saem labaredas, da boca do filho saem serpentes rubras e brilhantes. Nas costas da filha há um par de olhos sanguinolentos que giram sem parar. E a empregada? Um leve sorriso parece indicar que está a se divertir.
Em instantes tudo mais dentro da sala se tinge de vermelho-sangue. A cor atinge Magnólia e faz sair fumaça de sua pele. Ela consegue se soltar do gigantesco tricô e, num intenso frenesi, aos gritos, esfrega os braços como se quisesse tirar o vermelho de sua pele. Consegue se arranhar e intensificar mais ainda o vermelho . Magnólia tenta correr, fugir dali, mas não consegue. De pé, paralisada, sente a dor da vermelhidão que a queima e sufoca. Ela está se afogando no vermelho. A tira de tricô, agora de um escarlate vivo, se enrola em seu pescoço, o filho a aperta com força, o médico e a empregada ajudam. A filha nada faz.
Tudo some no vermelho.
Do livro de contos Vermelho