Tempus fugit
Taís adora apreciar as cerejeiras em flor. A estradinha interna do sítio está ladeada por massas de miúdas flores cor-de-rosa. O contraste desses vários tons com o céu azul é forte. As nuvens chegam a doer na vista de tão alvas. A falta de poluição e a secura do ar resultam em cores bem definidas, intensas.
Ela caminha pelo gramado acompanhada por seus dois cães. É sempre assim: ela vai, eles vão atrás. Até que um movimento diferente ou um cheiro instigante faça com que eles saiam em disparada e sumam mata adentro. Voltam arfando, às vezes molhados, mas satisfeitos com a aventura secreta. Pedem carinho se esfregando nas pernas e mãos dela, parecendo pedir desculpas pela breve ausência. Ela acha graça, os acaricia e continua a contemplar a beleza que existe ao redor.
Passado um tempo, se senta num grande banco de jardim e continua contemplando a paisagem.
Mas sinais de preocupação retornam e enrugam sua testa. A conversa iniciada após o café da manhã é retomada.
— Mas quem te disse que não podes mais fazer estas coisas, Taís?
— O corpo diz, a idade diz. Ninguém precisa me dizer. Eu sei.
— Mas tu gostas de fazer teus trabalhos, de criar!
— Claro que gosto, não se trata de gostar ou não gostar.
— Trata-se de quê? Me diz, quero entender.
Taís se mexe, muda de posição, cruza e descruza as pernas, olha para longe.
— Você já viu como as cerejeiras estão lindas? Época do meu mundo ficar cor-de- rosa. Mas dura pouco, nas árvores e em mim.
— Não desconverses…
— Não quero falar dessas coisas, agora não.
— Eu quero saber. Olha pra mim, fala.
— Você já sabe, me falta coragem, persistência.
— Toda vez tu vens com a mesma lengalenga. Vejamos o que tu acabaste de me dizer, por partes. A coragem. Essa tu tens, de sobra. Já fizeste trabalhos audaciosos e os expuseste em diversas galerias. Trabalhos pessoais que tu ousaste mostrar! Em viagens a trabalho tiveste que falar em público, e o fizeste muito bem. Deste aula durante anos, enfrentando alunos, diretores, coordenadores, lutando por melhores condições de trabalho. Também o fizeste muito bem. Quando tu decidiste parar de lecionar , não queriam que tu parasses, pediam pra que continuasses. Por quê? Pensa, reflete sobre isso.
Silêncio. Só se ouvia o vento nas folhas da árvore próxima.
— Você viu o Jacu? Aquela galinha grande e preta, desengonçada. Voou praquela embaúba ali, a que está carregada de frutinhos. Eles adoram. Comem tudo. Nessa época do ano eles se fazem. Estão devorando os pés de alface lá da horta. Comem os brotos da mangueira, acabam com tudo. Olha lá, lá vai ele para a outra árvore! Tadinho, feinho que só.
— Evitaste a conversa novamente. Fugindo, sempre fugindo.
— Ah, o dia está muito bonito pra eu ficar discutindo minha existência, frustrações e dificuldades. Quero paz, pegar sol, apreciar o belo. Sem fazer nada.
— Não senhora, hoje vai ser diferente. Voltando ao assunto, te lembras do Festival de Inverno em Ouro Preto e o sucesso do teu workshop? Claro, esqueceste. Conveniente, não é? Mas eu me lembro que os trabalhos dos teus alunos foram o centro das atenções. E em Londres? Duas semanas com alunos criativos e interessados, mais a participação na coletiva da galeria principal. Foste a única a vender trabalho, te lembras? Todos queriam saber sobre as técnicas utilizadas e desenvolvidas por ti. Tu podes — o que quiseres, mulher.
— Tenho família, marido, filhos e, agora, netos. Não posso viver enfiada em mergulhos criativos, que tomam tempo, saem caro e são pouco lucrativos. Minha casa fica de lado, não dá.
— Uma coisa não impede a outra! Dá valor a ti. Vive-se somente uma vida. Paraste de sonhar?
— Estou velha, meu tempo já passou. Quero calma, fazer o que for possível. Olha, o céu ficou laranja, que lindo! Adoro essa cor no céu. O cair da tarde aqui é sensacional. Uma pintura!
— Tu te boicotas, isso sim. Capaz, habilidosa. Tens muito a revelar.
— Ah, que nada. Me acostumei a fazer coisas pra mim, por prazer. Nunca pensei em viver de talento. Nunca me estimularam a fazer da minha suposta arte um meio de vida. Não sei me promover, disputar coisas, competir.
— Posso listar muitos desafios aceitos por ti e bem sucedidos. A última vaga no concurso prestado, sem fazer cursinho e tendo ficado longe de salas de aula durante anos. E a bolsa integral na universidade por ter passado entre os primeiros lugares? E o Mestrado? Passaste em segundo lugar porque interrompeste a prova, não fizeste tudo que sabias e podias.
— Parei mesmo, minha coluna agradece. A cadeira estava me matando. Já dava para passar, não precisava escrever mais.
— Não preciso dizer mais nada, né? Podes tudo, se quiseres.
— Sei não… meu tempo já passou.
Taís se levanta, vai para dentro de casa. O marido está na cozinha preparando caipirinha de limão galego, que ela adora.
— Você ficou um tempão lá fora, no jardim. Falando com quem? Telefone?
— Eu?! Não. Estava lendo um dos meus contos. Pra ver se soava bem. É bom ouvir em voz alta, dá para pegar uma porção de repetições, erros de concordância…
Conto do livro Vermelho