É Hoje!

Alheia a tudo que não tivesse relação direta com  a exposição que seria inaugurada dentro de poucos dias, Petra estava quase incomunicável. Marido e filhos já conheciam a mulher em plena imersão artística, desenvolvendo e finalizando trabalhos, acompanhando de perto as cópias feitas pelo laboratório e, uma vez aceitas, orientando a montagem – fotos  em cor sem passe-partout nem moldura. Nada de  adereços que desviam o foco do que o trabalho é e quer expressar. 

Esta mostra tem como tema o feminino e ela, que sempre trabalhou com o corpo feminino, decidiu por em cheque a questão do nu frontal num conjunto de cinco vulvas em close, imensas e coloridas. Vulvas de brancas, de negras, de jovens e de idosas. Ela queria que todos encarassem de perto a grande intimidade feminina ainda envolta em muitos tabus criados pela sociedade. Petra as desnuda com impudor, revelando o primitivo, rude mas de crueza intrigante. Que todos vejam a bainha feminina em detalhe. 

Sim, bainha pois vagina vem do latim e significa bainha. Aliás as obras se intitulam BAINHA, numeradas de 1 a 5. 

Tinham sido dias e dias sumida em seu atelier. Quando reaparecia, não falava com ninguém, inteiramente tomada pelo trabalho.

Na véspera da abertura da mostra o sono não queria chegar. Tudo pronto, os trabalhos  já nas paredes da galeria exatamente como ela os queria. Convites distribuídos, divulgação feita e coquetel encomendado. O marido a aconselhou a se deitar, pedindo que tomasse melatonina ou algum outro indutor do sono, mas ela resistiu,

  — Não me dou bem com isso. Fico alterada, você sabe.

Ele desistiu, retirou-se para o quarto. Ela ficou no ateliê, revirando seu caderno de notas, um verdadeiro storyboard com pequenas fotos das 5 imagens  e várias anotações feitas. Acrescentou alguns parágrafos sobre processos envolvidos e o resultado obtido. Guardou tudo que tinha espalhado e decidiu se deitar, tentar ficar quieta

Umas duas horas mais tarde,  o marido acordou ouvindo a voz da mulher ao longe. Procurou-a pela casa e a encontrou na cozinha, no escuro. Ele acendeu as luzes e  a viu falando, gesticulando muito e afastando pessoas que só ela via. Petra era sonâmbula, às vezes andava pela casa dizendo coisas sem nexo. Ele sabia que teria que se aproximar dela com calma, fazer com que sentisse sua presença e despertasse. Aproximou-se, falou suavemente e tocou em um dos seus ombros,

— Petra, sou eu, Renato, vem comigo, estou com você.  

Ela continuou falando, bastante alterada 

— Vocês não entendem, é o meu trabalho. Preciso andar pela galeria sem roupa, nua em pelo. É uma performance. Vim preparada pra isso, não podem me impedir. Falta de decoro é o cacete, é arte, a performance faz parte, é importante. Não vou me vestir, é assim que tem que ser, SEM ROUPA! 

Renato tentava tirá-la do delírio, mas ela, nua em pelo, perambulava pela cozinha.  Ele não estranhou a nudez, ela frequentemente dormia assim. Mas nunca a tinha visto num transe de fala tão entendível. 

Ele já sem ação, atônito. Ela em movimento, desfilando e olhando para os lados, parecia cumprimentar pessoas com inclinações da cabeça. Até que ela começou a se encolher, parou de andar aos gritos de que não queria se vestir, 

— Isso é censura, censura! — E se jogou no chão esperneando até ficar  imóvel. Ele a cobriu com uma manta e ficou ao seu lado até o amanhecer.

Ela acordou se sentindo bem. Renato confirmou mais um episódio de sonambulismo sem revelar o que tinha visto e ouvido. Petra não se importou e nem quis saber detalhes. Foi se vestir enquanto ele preparava o café da manhã. Os filhos se juntaram a eles e o assunto foi o vernissage de logo mais à noite. Quem tinha que ir para o colégio ou trabalho foi, quem tinha que ficar em casa ficou. 

No final do dia, com todos novamente juntos e se preparando para o grande momento, viram Petra aparecer descalça e num camisão vermelho que lhe chegava aos tornozelos, num despojamento estético impensável para um vernissage.

— É assim que você vai?! , perguntou Renato.

— Sim, tenho uma surpresa para todos. Haverá uma performance hoje à noite.

— Como vai ser?

— Surpresa, querido, uma grande surpresa. Nem a curadoria da mostra sabe o que vou fazer.

Do livro de contos Vermelho

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