Desnorteada
Ando desnorteada, sem compreender o que me acontece e sobretudo o que não me acontece.
Há poucos dias fiz 80 anos. Vida longa, que não pode ser tão longa quanto eu gostaria. Isso assusta. Desde então, não consigo trabalhar direito. Não que tenha abandonado meu ritual de trabalho: escritório arrumado, notebook ligado, e músicas tranquilas como pano de fundo. Ah, e gotas de determinados óleos essenciais no vaporizador para despertarem o prazer de criar. Mas, não está dando certo.
Ter ideias nunca foi difícil para mim. Elas me invadiam, eu as seguia. Com enredos infantis, inventava histórias que brotavam com a maior facilidade. Não mais! Porquê?
Já escrevi, mentalmente, crônicas interessantes quando no chuveiro. A água, ao escorrer, muitas vezes me conta segredos, me abre a mente. Receptiva, falo com personagens. Surge um script que vai se entrelaçando, se opondo, se alternando, com humor, lirismo, cinismo e outros ismos. Falar sozinha não é mania, é meu normal. São conversas ricas: temas aparecem, componho tipos, sinto onde e quando a ação se passa. Entre perguntas e digressões, teço a trama. Porém, é só fechar as torneiras que tudo escorre ralo abaixo. Luto para recomeçar com os respingos que ficaram e o resultado não me satisfaz, me entristece.
Dias atrás, deixei o celular ligado na tentativa de gravar diálogos durante o banho. Qual o quê? Consegui lindos sons de água correndo. Não desanimei. Persisti com as gravações para concluir que ter o celular testemunhando meus momentos íntimos me retrai. Decidi tirar a teima com outro teste: banhar-me com o celular fora do banheiro. Os monólogos voltaram…para sumirem assim que fechava as torneiras.
Certa vez, meu marido me surpreendeu falando sozinha. Estávamos na sauna de nosso sítio. Tinha entrado na ducha antecipando o agradável choque da água fria no corpo quente. Palavras brotaram, me animei. Lá pelas tantas, ouvi um comentário. Emudeci. Ele tinha ouvido tudo! A inspiração secou.
Ele tentou me socorrer relatando o que tinha ouvido, querendo me ajudar a retomar o rumo. Cada palavra dele me doía.
Calada, me afastei para contemplar um canteiro florido, mirar o céu azul e tentar entrar em estado de contemplação. Ansiava pelo silêncio para apreciar a natureza em sua infinita beleza. Sentir vida. Não pensar.
Melhorei um tantinho, é verdade, mas ainda estou longe de me sentir criativa como antes. Estou me esforçando para aceitar minha nova idade e suas consequências desde que jamais me esqueça da beleza que há no intangível, na simplicidade. É nela que encontramos o que realmente importa.
Ah! Que eu acolha a vida em seus próprios termos, sem a necessidade de explicações ou interferências externas.
Novos caminhos, aconteçam, se aproximem de mim! Estou pronta para redescobrir a beleza do inesperado.