De fósforo e fogo
Tati terminou de coar o café. Esperou que o marido se sentasse à mesa antes de se juntar a ele. Cadê o pão? Ela ia falar que era dele a tarefa de pegar os pães na padaria da esquina. Desistiu. Não queria mais brigas. Levantou-se, foi até a porta da casa ao lado e pediu dois pães. Com o depois reponho, Linda, tão frequente nos últimos dias, voltou para o banquinho da cozinha. Calados, terminaram a primeira refeição do dia. Ele saiu para o trabalho dizendo para ela não salgar o feijão, para engomar suas camisas brancas de novo, e para achar seus óculos de leitura. Não encontro nada na bagunça do quarto, foi o que ela ouviu por último. Depois de sua partida, a mulher não tinha forças para se mexer. Lindalva a encontrou assim, imóvel.
— Continua a brabeira, né?
Tati apontou para a térmica com o café, empurrou um copo na direção da amiga, secou o rosto, assoou o nariz e começou a tirar as coisas da mesa.
As duas se conheciam desde a infância. Moravam numa antiga vila operária. Tati era madrinha do primogênito de Lindalva, mas não tinha filhos — sonho dourado, desejo mais que desejado. Logo que se casou, sua vida sexual tinha sido intensa e prazerosa. Mas nada de engravidar. Depois de muitos exames e consultas, os médicos tinham dito que ela estava bem mas que seu marido deveria procurar trata- mento. Um dos patrões de Lindalva, doutor Claudio, tinha indicado, sigilosamente, um especialista. Quem te falou desse médico? Meu ginecologista, mentiu Tati. Tu fica falan- do de mim com ele, é? Não, Toinho, falo de mim. Quero um filho. Ele disse que o caminho é esse. Marquei consulta pra você. Você prometeu.
Ficaram sabendo que ele tinha baixa contagem de espermas. Só faltava essa, porra-rala, o cara só faltou me chamar de porra-rala. Quase dei um soco na cara dele. Tati não fez nenhum comentário mas se pôs logo em ação. Já tinha conversado muito com Lindalva, estava preparada. Atacou com chá de chapéu-de-couro, gemadas, ovos de codorna, amendoim. Sem sucesso.
O tempo foi passando. Ele bebendo, engordando e perdendo o interesse por ela. Em duas tentativas recentes não tinha conseguido a esperada ereção. É o estresse, trabalho muito. Tudo muito caro, ganho pouco, e mais e mais desculpas foram desfiadas. E não me fale de médico. Vai passar.
Ela emagrecendo.
Lindalva sempre passava pela casa de Tati na volta das faxinas. Espalhava ânimo e alegria até conseguir arrancar um sorriso da amiga. Só então ia tratar de sua casa, filhos e companheiro.
As semanas se alternando, e tudo na mesma. Até o dia em que Lindalva entra na casa de Tati aos gritos:
— Tu num sabe o que descobri!
Tati quase se queima com a água quente para o café. Lindalva pede desculpas, abraça a amiga e diz que o problema dela estava resolvido. E danou-se a falar e falar.
— Num entendi nada, Linda. Senta aí, toma um café e começa tudo de novo.
E Lindalva contou que, faxinando, tinha encontrado um recorte de jornal no meio dos papéis do doutor Claudio. Notícia reveladora.
— Tu me conhece, né? Sabe que não sou de ficar futucando. Faço faxina e pronto. Mas o papel dobradinho caiu no chão. Peguei pra botar de volta na escrivaninha e vi que era sobre “descobertas sobre a química da ereção”. Não perdi tempo! Passei os olhos rapidamente, não dava pra eu ficar lendo todas as palavras. Dona Amanda podia me flagrar, ia dar rolo. Anotei o principal. Pelo que entendi, tu precisa de rato e fósforo.
— O quê!?
— Lá diz que os roedores são fundamentais. Tudo deles funciona como nos homens. Tu tem que ter uns ratos em casa. A gente cata no quintal, põe em gaiolas, junto com fósforos.
— Fósforos?!
Nessa hora, Lindalva pegou suas anotações e leu que precisava ocorrer a fosforilação.
— Fos-fo-ri-la-ção. Ação do fósforo, da chama! Uma proteína sai do fósforo e uma química acontece no Toinho: o bilau dele fica durinho-durinho, e por um tempão. Fósforo, amiga. Fósforo!
— E faz filho?
— Ah, disso num falam. Mas tu tenta. Pelo menos vocês voltam a se divertir, né?
E a conversa continuou por um bom tempo. Planejaram os detalhes da empreitada, entre risos e piadinhas. Pensaram em como fazer para pegar os ratos, onde eles ficariam, como seriam alimentados. Saíram à cata de arapucas, iscas, gaiolas e potinhos para água. Dias depois já havia duas gaiolas de arame bem debaixo da janela do quarto do casal. Cada uma com um rato, pote com água, e uma caixa de fósforos de palitos longos, bem grandes.
Duas semanas se passaram, Toinho continuava o mesmo. Só queria saber de futebol na TV e cerveja bem gelada. E Tati alimentando os ratos, tapando as gaiolas com panos para que o marido nada percebesse. Os roedores gordos, barulhentos, mostrando os dentes um pro outro.
— Linda, num tá adiantando. Tô farta de cuidar desses bichos. Desisto.
— De jeito nenhum. Solta esses dois e vamos pegar outros.
E começou tudo de novo. Dois ratos presos com comida, água, e – dessa vez – duas caixas de fósforos em cada gaiola. Toinho bebendo cada vez mais, reclamando de tudo. Camisa mal passada, casa desarrumada, comida salgada, e aquele barulho estranho vindo do quintal. Tem um chiado bem debaixo da minha janela. Não consigo pregar o olho. Tu num ouve, mulher? E partiu para o quintal, disposto a encontrar a origem do ruído. Achou. Deu-se a confusão — bate-boca, seu isso e sua aquilo. Por fim, Toinho saiu batendo a porta, aos gritos de você tá é maluca, tá doida.
Lindalva entrou assim que ele saiu. Ouviu tudo e disse que ele num prestava pra nada mesmo, melhor nem voltar.
— Diz isso não, Linda. Tu trabalha, eu não. Ele nunca me deixou trabalhar.
Choro, soluços e suspiros correram soltos. E nada do marido. Ela soltou os ratos bem longe dali. Desfez-se das arapucas e gaiolas. Guardou os fósforos. Arrumou a casa, lavou cozinha e banheiro, trocou roupa de cama, engomou camisas, e fez lasanha — o prato preferido dele. Com a casa brilhando, era hora do banho. Tirou um vestido florido do armário e o pôs na cama. Recordou o momento de alegria ao receber aquele presente de Toinho no Natal passado. Teve a ideia de acender uma vela para sua protetora, Nossa Senhora do Amparo. Foi até a cozinha e voltou com uma vela e os fósforos apertados contra o peito, já em oração. De frente para a imagem da Santa na mesinha do quarto, implorou por perdão e que Ela consertasse os estragos dos últimos dias.
Cuidadosamente riscou um fósforo e acendeu a vela. Logo uma chama bonita cresceu e Tati se entregou aos pedidos com todo fervor. De olhos fechados, não viu quando uma lufada de vento mudou tudo naquela beatífica cena. A cortina de tecido sintético encostou na vela acesa. Tudo começou a queimar. Vizinhos acudiram, bombeiros vieram. Apagaram o fogo. Mas a sala tinha sido quase toda destruída — pelo fogo e pela água das potentes mangueiras.
Tati olhava para sua casa mas não via nada. As lágrimas lhe toldavam a visão.
O soldado do fogo sentiu pena da moradora. Num abraço amigo, lhe dirigiu palavras de conforto ao pé do ouvido. Voz grave, quente, penetrante. No dia seguinte, passou por lá para ver como ela estava. Por sorte, deu tempo dela se enfiar de novo no vestido florido e ter a lasanha para oferecer. Depois, na semana seguinte, ele voltou e na outra, e em outras mais. Toinho passou pra pegar suas coisas. Tati foi gentil e educada ao dizer, com firmeza, que não o amava mais. Todas as noites ela rezava para sua querida Santa, pelas graças alcançadas.
Nove meses depois os gêmeos nasceram.
Conto do livro A Dança das Letras