Contos

  • No caminho

    A lagoa está deslumbrante hoje. O espelho d’água sem nenhuma ondulação, nada que interrompa sua serenidade. Queria tanto ficar aqui, absorvendo a calma que ela generosamente oferece. Mas o dentista me espera. Vou deixar a tranquilidade para encarar a expectativa de dor numa cadeira desconfortável. Ele pode ser a pessoa mais gentil do mundo mas, em seu consultório, é meu algoz.  Para mim não existe ida ao dentista sem dor, seja ela física ou mental. Sinto-me tensa. Vou me concentrar na caminhada até o consultório. Talvez me acalme.  Praça N.S da Paz, enfim! Vou cruza-la para cortar caminho e me encantar com a beleza do verde e o aroma das…

  • Delírios, servem pra quê?

    Dizer que meu coração sangra é lugar comum, mas eu sou um imenso lugar comum: o do sangramento, da dor, da perda, do impacto acachapante de ser um projeto não realizado e sem tempo pra ser iniciado.  O que ouvi ontem rompeu meus diques, trouxe à tona a lama contida, inerte, pegajosa. Tudo que não resolvi, que fingi não ver me inundou. Um gosto amargo arde na minha garganta. Mal consigo respirar. Acumular tanto lixo, pra quê? Quero vomitar tudo isso num jato só. Me esvaziar, me limpar.  Mas, afundo na areia movediça que, aos poucos, me consome. Ela manda, se impõe, me envenena e paralisa.  Sou mole, frouxa, como…

  • Sozinha

    Ouço o que dizem — “está só, que pena, tão bonita”. Nada disso! Estou acompanhada das desgraças que me habitam, das desgraçadas que me cercam, e das graças que não me atingem, que flutuam à minha volta até que a brisa as leve. Não me queixo, sou formada em abandono. Sou como mobiliário de rua: pra ser visto, usado e posto de lado. Há os que querem me “salvar, proteger, e abrigar…”. Fujo deles, querem me prender! Já sou presa dos desejos dos outros, mas não sou presa fácil.  Há impulsos que pareço tolerar. Finjo pra me defender, e pra ter o que comer. Bem sei o que é  fome…

  • Os chinelos

    Um dia, acordei sufocada, pesada. Uma sensação de culpa imensa tinha me tomado, sem volta e sem perdão, e me colava na cama. A ponta de um sonho ainda estava na minha lembrança, algo raro. Meus sonhos costumam fugir de mim quando acordo. Chego a vê-los me abandonando e o esquecimento se  instalando. Mas, naquela manhã, a culpa ficou e com ela vieram lembranças antigas, de mais de trinta anos: os chinelos de papai caídos no jardim com as solas viradas para cima — azar maior impossível. E me voltaram tempos de criança, e minhas práticas sagradas do dia a dia: desvirar sapatos e chinelos por ventura emborcados, não passar…

  • Conveniências

    Padre, quero me confessar. Não estou à beira da morte e nem mal da cabeça. Estou velha, só isso. Pequei, errei, é hora de acertar as contas. Não sei quanto tempo mais tenho por aqui, já-já me chamam para o andar de cima. Católica? Sim, fui. Não se espante, explico. Tive todo o preparo, instrução religiosa mas, lá pelas tantas, parei de praticar. Não que tenha perdido a fé, ela se voltou para um Deus sem igreja. Esse é um dos meus pecados, bem sei. Padre, por favor me dê esse tempo, quero me confessar conversando. Sei que concordou em me ver nesse quarto onde moro. Preciso que me ouça.…

  • Em algum lugar

    — Acho que você deve dar uma olhadinha nisso aqui  — Guidobaldo estendeu o jornal para o amigo. — Não, deixa pra lá, Guido. Não quero me aborrecer mais. Nada vai mudar coisa alguma. E não importa, na verdade não importa. O que é já é, vai ser e sempre será. — Mas Gali, é o Papa, ele falou para um público enorme lá na Terra. — Há sempre um Papa falando para um público enorme de ignorantes… — Mas é diferente, é importante. É o Papa João Paulo II se retratando em público. Ouça, preste atenção: “1992, Ano dedicado à Astronomia. 31 de outubro de 1992, a Igreja revê…

  • Momento vivido

    Hoje de manhã, atrasada e pensando no que teria de enfrentar nas próximas horas, uma voz suave me trouxe de volta para onde eu realmente estava e devia estar: em casa e com o neto em apuros. — Vó, meu dever de casa está confuso. Pedi a ele que lesse o enunciado da questão. Ele leu em voz alta:  “acrescente uma letra às palavras abaixo e crie novas palavras”. Ele tinha criado bamba ao inserir um ‘m’ entre as duas sílabas de baba e queria saber se essa palavra existia. — Existe sim. — Mas o que é bamba?, ele perguntou. — Já vamos descobrir, disse, enquanto alcançava meu ‘Aurélio’…

  • Dogs do Dan

    Daniel precisava de grana. Tinha namorada, queria fazer programas e se divertir. Mas, sem dinheiro? Tentara entrar para a Marinha, sonho de criança. Se via na  Banda dos Fuzileiros Navais, tocando seu sax-tenor dourado que a patroa da mãe lhe dera há cerca de quatro anos. Mas, não conseguira ser convocado e já passara da idade para tentar exames ou concursos para qualquer carreira militar. Tinha ouvido falar de músicos que tocavam no metro ou em esquinas do Centro ganhando  algum trocado dos passantes. Só que ele não tinha para as passagens. Sua mãe gastava oito reais por dia de condução indo e vindo do trabalho. Muito dinheiro! Onde morava…

  • Menina, cão, quintal, família feliz

        O que dizer desta fotografia? Vejo crianças, um cachorro, e casas. Uma menina, bem à vontade junto ao cão, cuida de conter o animal. Toca-o como que pedindo que obedeça e colabore para que sua agonia acabe e ele possa sair do lugar da obediência e da submissão. E ele procura sinais de agrado no dono, o fotógrafo, que o posicionou e ordenou que ficasse sentado naquele lugar. Só meu pai tinha voz de comando sobre o cão. Sou a menina solícita. Me acostumei a ver desde muito cedo as imagens colecionadas por minha mãe em um álbum intitulado My Book Treasure. É um grande álbum marrom de…

  • O presente

    Noite fria, muito escura. Nós três, os maiores, grudados, bem juntinhos, sentados no primeiro degrau da escada. O menor passava pra lá e pra cá no colo da babá apressada, arrumando coisas, pegando roupas nossas no quarto dos fundos, no andar de cima, pela casa. Não sei bem o que ela fazia, mas estava muito ocupada. Nossa casa cheia e continuando a se encher de pessoas solenes, sérias. Umas conhecidas e muitas outras não. Onde estava minha mãe? Continuava sumida. Tínhamos voltado do colégio e ela não tinha aparecido para nos receber. Eu ouvia  seu choro, mas quando a procurava só via as costas de mulheres encurvadas olhando para algum ponto…