Contos

  • A Dança das Letras 

    Aprendi a ler e a escrever com cinco anos e sem a ajuda de ninguém. Não que me lembre de tal proeza. É que aceito como minhas muitas das lembranças que os mais velhos me passaram — preciso ter um passado. Então, não me lembro do seguinte: lia, escrevia e desenhava bem, desde muito pequena.  Morávamos em São Paulo — papai, mamãe, eu e um tio que tinha ido para lá estudar Artes Gráficas. Eu o adorava e sempre dava um jeito de ficar por perto enquanto ele trabalhava em capas de livros, cartazes e folhetos publicitários, cercado de lápis de cor, tintas e pincéis. Era tudo fascinante. Para que…

  • É Hoje!

    Alheia a tudo que não tivesse relação direta com  a exposição que seria inaugurada dentro de poucos dias, Petra estava quase incomunicável. Marido e filhos já conheciam a mulher em plena imersão artística, desenvolvendo e finalizando trabalhos, acompanhando de perto as cópias feitas pelo laboratório e, uma vez aceitas, orientando a montagem – fotos  em cor sem passe-partout nem moldura. Nada de  adereços que desviam o foco do que o trabalho é e quer expressar.  Esta mostra tem como tema o feminino e ela, que sempre trabalhou com o corpo feminino, decidiu por em cheque a questão do nu frontal num conjunto de cinco vulvas em close, imensas e coloridas.…

  • Vermelho

    — Tri-co-tar! Eu?! “Um grande remédio, …  você vai ver como é bom, funciona mesmo” — odeio a voz desse geriatra. Grudenta, um carrapato. Aliviar tensões, bah! A tensão toda passa pra essas drogas de agulhas. Desestressar… Um bosta esse médico. O tempo todo sorrindo. Pra suavizar os diagnósticos? Sei que estou deprimida, ansiosa. Sei que preciso de ajuda. Fui ao consultório pra quê? Ai! Merda, espetei meu dedo …  Vamos lá: dez pontos na agulha, ponto malha na ida e ponto avesso na volta. O fio passando pelo pescoço. Desajeitada, errando muito, Magnólia enfrenta o novo aprendizado. Uns dias pela manhã, outros à tarde, mas, a maioria das vezes,…

  • Helena 

    — Chegou cedo. Deu formiga na cama? Helena nem respondeu, um olhar bastava. O porteiro que pensasse o que quisesse. Entrou no elevador e subiu ao décimo quinto andar. Entrou no apartamento. Silêncio e penumbra. Acendeu a luz da cozinha e foi trocar de roupa. Ficou um bom tempo no banheiro: escovou os dentes, lavou o rosto e tentou encontrar um pouco de ânimo e confiança, mas estava péssima. Vou preparar o café. Queria oferecer para sua patroa um café da manhã digno de novela de TV. Tirou o pão de queijo do freezer e arrumou as bolinhas na assadeira. Ligo o forno às sete. Descascou frutas e cortou em…

  • A demora 

    No dia em que fiz sete anos, nos mudamos para uma vila no Engenho de Dentro, e conheci o Seu Zezinho. Quer dizer, primeiro vi a cadeirinha de balanço e só depois o Seu Zezinho. Foi assim: entramos na vila e percebi a pequena cadeira de balanço na porta de uma das casas. Só depois é que vi um homem pequeno enfiado na cadeirinha de criança.  Era uma vila com uma rua central e quatro casas de cada lado. A nossa era a segunda do lado ímpar, colada na da cadeirinha. Larguei meu casaco em cima de umas caixas de papelão e deixei meus pais tratando da mudança. Só pensava…

  • À deriva 

    Noite fria, muito escura. Nós três, os maiores, grudados, bem juntinhos, sentados no primeiro degrau da escada. O caçula passava pra lá e pra cá no colo da babá apressada, arrumando coisas, pegando roupas nossas no quarto dos fundos, no andar de cima, pela casa. Não sei bem o que ela fazia, mas estava muito ocupada. Nossa casa cheia e continuando a se encher de pessoas sérias. Umas conhecidas e muitas outras não. Onde estava minha mãe? Continuava sumida. Tínhamos voltado do colégio e ela não tinha aparecido para nos receber. Eu ouvia seu choro, mas quando a procurava só via as costas de mulheres encurvadas olhando para algum ponto…

  • Ensinamentos

    Na casa de minha mãe era difícil ter voz própria, expressar opiniões, sair do lugar da obediência quase cega. Um tio meu abriu meus olhos para as múltiplas vozes, para entender que através da palavra escrita se podia ter liberdade e ir longe. Usei esse poder no colégio, em dissertações e questões de interpretação de textos. Aderi a um clube de Amigos por Correspondência que me possibilitou escrever cartas para desconhecidos, pessoas de outros países e culturas. Me correspondi durante muito tempo com um rapaz de Malta. Treinei meu inglês e passei a conhecer uma pessoa inteligente e culta, com senso de humor e aguçado espírito crítico. Mas, tempos depois,…

  • Desnorteada

    Ando desnorteada, sem compreender o que me acontece e sobretudo o que não me acontece.  Há poucos dias fiz 80 anos. Vida longa, que não pode ser tão longa quanto eu gostaria. Isso assusta. Desde então, não consigo trabalhar direito. Não que tenha abandonado meu ritual de trabalho: escritório arrumado, notebook ligado, e músicas tranquilas como pano de fundo. Ah, e gotas de determinados óleos essenciais no vaporizador para despertarem o prazer de criar. Mas, não está dando certo.  Ter ideias nunca foi difícil para mim. Elas me invadiam, eu as seguia. Com enredos infantis, inventava histórias que brotavam com a maior facilidade.  Não mais! Porquê?  Já escrevi, mentalmente, crônicas…

  • Há cafés e cafés

    Você já percebeu  que todo mundo tem uma opinião sobre como fazer café? Há os que juram que a prensa francesa é a única maneira de fazer um bom café. Aí vem a turma do café expresso que acha que não se deve sequer olhar para um bule de café coado. Café em garrafa térmica então? É um sacrilégio. E os que só admitem café coado com água a exatamente 90 graus? Fico pensando: no final das contas, não estamos todos apenas tentando acordar? E o que dizer das máquinas de café? Umas têm cara de nave espacial. Botão para tudo! Um botão para moer, um botão para aquecer, um…

  • Carta a Raquel de Queiroz

    Estimada Raquel,  Quem te escreve não é a fanzoca desejosa de contato com a grande escritora. Quero estar contigo por termos algo em comum — o meu pai, Clovis. Ele, amigo do teu irmão Flávio, frequentou tua casa, o Sítio do Pici, pois a família dele tinha ficado no Acre quando ele foi estudar em Fortaleza aos12 anos. Passou nos exames para o Colégio Militar e lá fez amizade com teu irmão, ambos alunos internos.  Bom estudante, cheio de vida e amante de esportes, com um futuro pela frente — não longo como o esperado, infelizmente. Seguiu a carreira militar como oficial da Aeronáutica. Dos 4 aos quase 6 anos…