Carta a Raquel de Queiroz

Estimada Raquel, 

Quem te escreve não é a fanzoca desejosa de contato com a grande escritora. Quero estar contigo por termos algo em comum — o meu pai, Clovis.

Ele, amigo do teu irmão Flávio, frequentou tua casa, o Sítio do Pici, pois a família dele tinha ficado no Acre quando ele foi estudar em Fortaleza aos12 anos. Passou nos exames para o Colégio Militar e lá fez amizade com teu irmão, ambos alunos internos.  Bom estudante, cheio de vida e amante de esportes, com um futuro pela frente — não longo como o esperado, infelizmente.

Seguiu a carreira militar como oficial da Aeronáutica. Dos 4 aos quase 6 anos moramos em Fortaleza, ele no posto de Subcomandante da Base Aérea. Fomos ao Pici com mamãe e meus irmãos. O nome Pici nunca mais saiu da minha cabeça.

Quando papai morreu, morávamos em São Paulo. Eu tinha 6 anos. Me lembro dele  muito carinhoso, paciente, amoroso. Comunicativo, se dava com pessoas de todos os níveis sociais, sem restrições. Isso não é novidade pra você, mas gosto de falar dele, da sua alegria e gosto pela vida.  Sua  risada era contagiante e ainda soa em meus ouvidos. Conhecer quem o conheceu preenche vazios. Ele fica mais completo em mim. 

Há dois anos, em Fortaleza, vivi uma experiência emocionante. Por acaso um tio soube de um encontro de russanos no Clube Náutico — debateriam projetos sociais para Russas, a cidade natal de meu avô paterno. Fomos e lá estavam vários primos do meu pai e do meu tio, todos descendentes de Marica, irmã de meu avô. Quando souberam que a filha do Clovis estava presente, vieram me abraçar. Pude ver como gostavam do meu pai! Ouvi elogios, histórias engraçadas e interessantes, e como a prematura morte dele os abalara. Ele reviveu em mim naquela noite. Fui tratada como uma rainha, só faltando mesmo o tapete vermelho. Essa acolhida me levou às lágrimas. Meu pai não tinha sido esquecido. Não há como descrever a emoção que senti, e como isso me fez bem. A prima Ligia prometeu me dar uma foto dele, com 17 anos, dedicada a “Tio Antônio”, o pai dela. Dito e feito. Ela me entregou a foto dois dias depois. Um belo rapaz. A letra dele com palavras de agradecimento…

Lágrimas não me pediram autorização, simplesmente escorreram por meu rosto, lavando minha alma saudosa. 

Raquel, eu poderia falar de meu pai por horas e horas, mas gostaria mesmo de te fazer perguntas, te ouvir na varanda do Pici, você na cadeira de balanço e eu na rede, só nós duas — o tempo passando e o passado sendo repassado. Ah, não aconteceu! Joguei fora a oportunidade de te conhecer. Um amigo do papai e do Flávio, o Brigadeiro Labre, se ofereceu para intermediar nosso encontro. Me faltou coragem, a ditadura da timidez venceu, perdi a chance.

Escrevo, rememoro o que fiz, vi e senti, e invento memórias  — todas me fazem bem. Completam, de um modo ou de outro, a pessoa interrompida que foi meu pai, preenchem o vazio que ele deixou. 

Essa carta confessional despertou sentimentos antigos e deu luz a novos. 

Sigo feliz por ter tido o pai que tive. O que ele plantou em mim me nutre, me alegra, é eterno.

Até um dia, quem sabe?

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