Ao vento
De quem é isso?, balbuciou Heloísa, parando de repente, hipnotizada pelo que via no secador de roupas. Uma minúscula peça solitária dominava o ambiente ascético da área de serviço — uma tanga de renda vermelha.
Se não era dela, só podia ser da empregada. A cabeça de Heloísa entrou num rodopio acelerado, com milhares de pensamentos se sucedendo, ilógicos e incoerentes: Cida tem uma bunda enorme, é barriguda, uma eterna grávida, uma fodida que mora longe, cria três filhos sem marido, não tem grana para luxos, não tem tempo pra essas coisas, não pensa – PARA, PARA, PARA! Cida tem lingerie sexy, transa legal o seu corpo quarentão e faz coisas que nem imagino.
A calcinha secando, embalada pelo vento que entrava pela janela, parecia uma bandeira demarcando os limites dos territórios. Um apartamento, duas mulheres, dois mundos opostos.
Heloísa voltou correndo para o quarto. Precisava ficar quieta. Felizmente, não trabalhava às sextas-feiras. Enfiou-se na cama e ficou imóvel, de olhos fechados, toda contraída. Tentou desligar seus pensamentos e parar de sentir. Impossível. A calcinha vermelha lhe mostrara, em segundos, tudo que havia de errado em sua vida. Acontecimentos recentes afloraram: o filho que saíra de casa para estudar no exterior, a casa vazia que o casal não conseguira encher de alegria, a descoberta da traição, a separação.
E lhe veio à mente o dia em que, por engano, saíra para o consultório com o celular do marido, Rogério. Ao verificar suas mensagens, ainda na garagem do seu prédio, identificara a voz de Sandra, sua melhor amiga. Sacanagem, sensualidade e muito sexo a atingiram, como um direto na boca do estômago. Tonta, a respiração curta e difícil, imaginou as proezas de Rogério & Sandra durante infindáveis segundos. As intimidades da dupla, com promessas de mais e melhor pro final da tarde, queimavam-lhe a mente e o coração. Sandra sabia das dificuldades dele, lhe dizia pra ser paciente, que as coisas iriam melhorar. Melhorar pra ela, cretina, falsa, filha da puta! Heloísa jogou tudo na cara do marido, junto com o celular. Falou, falou, falou, desesperada. Depois de um longo silêncio, ele disse: Não tenho o que te explicar. Aconteceu. Como você quer fazer? Naquela mesma noite, Rogério saiu para não mais voltar. Já fazia mais de um ano que os direitos tinham sido respeitados e os bens divididos. Falavam-se de vez em quando, trocando notícias sobre o filho distante.
Depois de uma hora em posição fetal, Heloísa se levantou, tomou um banho e foi se vestir no closet, como de costume. Assustou-se ao ver sua imagem no espelho da parede ao fundo. Minha cara tá horrível, murmurou, enquanto deixava a toalha cair. Baixou o olhar para seu corpo refletido, examinando-o minuciosamente. Aprovou os braços firmes, o busto pequeno, os quadris estreitos e as pernas longas e musculosas. Gostava de ser magra. Viva minha avó, de quem herdei tudo isso. Faltou me ensinar como se usa.
Heloísa não tinha vaidades. Suas roupas eram práticas, confortáveis e discretas. Funcionais. Poderia usar uma tanga igual à da Cida, mas isso jamais lhe passara pela cabeça. Sem pensar, abriu sua gaveta de calcinhas e foi jogando uma por uma no chão. Iguais, grandonas, broxantes. Por que faço isso comigo, por quê?, pensava, de olhos presos naquelas peças sem graça. Foi então que partiu para o ataque. Pegou uma tesoura na escrivaninha e, entregando-se a uma raiva avassaladora, picotou todas as calcinhas. Cortava, retalhava, rasgava e xingava: Sandra, Rogério e, depois de um tempo, ela mesma. Uma hora depois, tinha feito um estrago enorme, pois também atingira mortalmente outros setores de seu vestuário. Queria ferir, destruir seus objetos neutros e conservadores. Deu por terminada a batalha pisoteando os destroços, numa dança de guerra furiosa.
Sentiu um grande alívio, muita fome e um certo cansaço. Preciso sair daqui. É, é isso. Vou sair por aí, andar pelo calçadão, olhar gente bonita. Sem rumo certo, sem hora pra voltar. Hoje vou fazer o que me der na telha. Esticou a mão para pegar uma calcinha mas lembrou-se do que acabara de fazer. Riu. Um riso nervoso, descontrolado, que terminou num choro sentido, silencioso. Doído. Olha o que eu fui arrumar. Não tenho calcinha pra sair!
Cobrindo-se com um quimono, foi procurar sua empregada, na esperança de conseguir uma calcinha limpa no armário das roupas lavadas.
— Só tem essa aqui, Dona Helô, respondeu Cida, com a tanga de renda vermelha nas mãos.
Heloísa, espantada e confusa, exclamou:
— Mas essa é sua, mulher!
— Minhaaaaaaaaaa? A senhora tá brincando. Essa não passa dos meus joelhos — respondeu Cida, rindo, meio sem jeito, e continuou — Tava aqui no tanque quando cheguei. Pensei que fosse da senhora. Isso é capetagem desse vento danado que joga de tudo aqui dentro.
Meia hora depois, lá estava Heloísa no café da esquina, mordiscando um croissant de chocolate enquanto o segundo cappuccino era preparado pelo Zé, o garçom que atendia as mesas da calçada. O jornal do dia continuava dobrado e esquecido sobre a mesa. Com o olhar perdido e um sorriso maroto nos lábios entreabertos, Heloísa acariciava sua saia de seda estampada e se deixava invadir por sensações novas. O frio do metal da cadeira lhe pareceu agradável ao contato. A sensação de frescor provocada pelo ar que lhe subia pelas pernas cruzadas, que ela balançava sem parar, era de um prazer indescritível.
Conto do livro A Dança das Letras