A lei é clara
Sala pequena de paredes sujas, descascadas, com enor- mes manchas de umidade. A única janela existente estava trancada. A persiana velha e rota não impedia a entrada do sol forte, cortante, inclemente.
Primeira vez de Ana numa delegacia. Não sabia porque a tinham levado para lá. Apesar de tudo, o que a preocupava, naquele momento, era ter faltado ao trabalho. Corria o risco de perder esse serviço justamente quando tinha conseguido faxina para todos os dias da semana. Não teve escolha. A polícia a apanhou bem cedo, no final do primeiro trecho de sua caminhada.
Ana acordou às quatro e meia, como todos os dias. Depois de se arrumar no escuro para não acordar a mãe e a filha, bateu a porta, deixando um trocado para pão e leite em cima do fogão. Caminhou dois quilômetros por um rua de terra, até chegar ao atalho da direita. Daquele ponto em diante, mais um quilômetro de marcha rápida pela picada aberta no mato até desembocar no asfalto, bem em frente ao ponto do ônibus.
Só que, naquela manhã, quando ia entrar no atalho, uma viatura policial se aproximou dela, com as luzes piscando e a sirene ligada. Em seguida, três policiais desceram do carro e a cercaram, perguntando seu nome. Sem muita conversa e na força bruta, eles a jogaram no banco de trás. Espremida entre dois guardas, foi levada para a delegacia. Durante o trajeto, tentou fazer perguntas, pedir explicações e protestar. De nada adiantou. Deram-lhe safanões aos gritos de “cala boca, crioula safada”. Desistiu de reagir. Melhor ficar quieta.
E lá estava ela esperando pelo delegado há mais de quatro horas. O policial que a recebera tinha dito que o doutor Ferreira viria logo falar com ela. Seu estômago já tinha até parado de roncar de tanta fome. Não tinha comido nada pois só tomava café nas casas em que trabalhava.
Um homem entrou na sala e disse que era o escrivão. Foi para a mesa, pôs uma folha de papel na máquina de escrever e começou a perguntar:
— Nome.
— Ana.
— Nome completo, porra.
— Ana Veiga dos Santos.
— Idade.
— 29
— Estado civil.
— O quê?
— Solteira, casada, viúva?
— Solteira.
— Profissão.
— Num tenho não.
— Vive de quê?
— Sou faxineira.
— Mora onde?
— Atrás da Amaral Peixoto.
— Número.
— 15, perto do km 43.
O escrivão deu a ficha dela por terminada, levantou-se e, já saindo da sala, disse:
— O delegado já vem pegar teu depoimento. Espera aí.
Muito tempo depois, outro homem entrou na sala com um copo de café na mão e um cigarro na outra. Não olhou para Ana nem por um segundo. Ficou em pé perto da porta terminando de beber, de fumar e de contar um caso. Quando ele, o escrivão e mais uns dois que o acompanhavam acabaram de rir, ele se sentou atrás da escrivaninha, esperou que os outros se acomodassem e, sem levantar os olhos da ficha sobre a mesa, disse:
— A senhora sabe por que foi detida?
Ana não sabia como responder. Se dissesse que sim, estaria mentindo. Dizer que não sabia? Não tinha coragem para tanto. Ficou calada.
— Sabe que cometeu um delito grave, não sabe?, ele perguntou enquanto lia a ficha.
— Sei não, acho que sei – Ana respondeu em voz baixa e hesitante.
O homem, finalmente olhando para Ana e sem esconder sua impaciência, disse:
— Como “acho que sei”? Dona Ana, vou repetir o que os policiais já lhe disseram: recebemos uma denúncia anônima sobre uma criança maltratada no barraco 15 da Rodovia, no km 43. É seu endereço, não?
— É, mas ninguém me…
— Estou falando! Os policiais foram lá e acharam uma menina de dez anos magra e maltratada. É sua filha?
— É, mas eu posso explicar.
O escrivão adverte Ana:
— Só fale quando tiver autorização pra falar.
O homem, que parecia ser o chefe, prossegue:
— A menina Roselene tá no hospital. Desidratada e cheia de marcas no corpo. Marcas de violência. A senhora quer me dizer que não sabia de nada disso? Ora, Dona Ana. Não me faça de bobo.
Todos ficaram em silêncio.
Ele continuou, em tom agressivo:
— Sabe o que vai acontecer com a senhora? A senhora vai acabar na cadeia. Vai perder a guarda de seus filhos. Seu caso é grave.
— Mas, posso…
— Não pode nada! Sua filha tem que ficar no hospital. Se a senhora for considerada culpada, alguém da família ficará com a guarda dela. O juiz é que decide.
— Minha mãe não tem condição.
— E o pai das crianças?
— Não tem pai das crianças. Sumiu faz tempo.
— Não tem mais ninguém, tios, tias?
— Não. Meu pai já morreu. Meus irmãos se mandaram quando eu era criança. Não sei deles.
— E a sua mãe? Trabalha?
— Faz tempo que não. Tá velha. Ela tem a pensão do meu pai, uma merreca. Não dá pra nada. Ela não vai dar conta.
— A senhora criou uma situação insustentável. A lei é clara. Se os pais forem negligentes, a lei pune.
— Eu preciso trabalhar, doutor. Eu que ponho dinheiro dentro de casa. Saio cedo, tá todo mundo dormindo. Quando eu volto, tá todo mundo lá esperando pelo pão e o leite.Todos lá – a Rose, minha mãe e às vezes o Valdo, meu filho. A Rose tava magrinha, eu sei. Mas é difícil. Eu não posso ficar o tempo todo com ela. Tenho de ganhar dinheiro.
— Mas, e a sua mãe? Podia cuidar da menina, pelo menos.
— Ela não tem paciência. Bate por qualquer coisinha. Tem mão pesada, sempre foi assim. A menina é difícil.
— A senhora não me deixa outra escolha. Tenho que tomar as providências legais. Sua filha vai acabar ficando sob a guarda de sua mãe.
Ele se levanta, fala no celular, vai até a porta da sala e pede mais café. Acende um cigarro e volta-se para Ana, dizendo:
— Vou encaminhar tudo. A senhora vai ficar na carceragem até segunda ordem. O juiz vai decidir como vai ser daqui pra frente.
— Eu não posso ficar presa, vou perder meu emprego. Elas não vão ter dinheiro para comer. Num vai dar certo. Minha mãe não faz nada direito, doutor.
— Não posso fazer nada. Tenho que seguir a lei e proteger sua filha. Um advogado vai cuidar do seu caso.
Ele se retirou, seguido pelo escrivão e pelos outros dois homens que o acompanhavam.
Ana ficou detida por 48 horas. Não apareceu advogado algum para falar com ela. Na manhã do terceiro dia, sem mais nem menos, mandaram Ana para casa. Disseram-lhe que voltasse na semana seguinte para saber sobre o caso. Foi para casa de carona em uma patrulhinha.
Ao chegar, encontrou a mãe vendo televisão. A velha olhou para ela e perguntou:
— Onde tu andou?
— Na delegacia. Disseram que eu maltrato a Rose.
— Num me olha assim que eu num tenho nada cum isso. Ana continuou encarando a mãe, agora certa de que ela tinha sido a autora da denúncia anônima.
— Pra que tu foi fazer isso, mãe? Tu tinha prometido que não ia bater mais nela. Ela é doente. Agora eles querem me prender. E tu que vai ter que cuidar dela.
— Mas o Proença disse que iam só te dar um susto, que era um jeito de botar a Rose num lugar especial. A gente não ia ter que cuidar dela. Ele garantiu.
Então, era isso. Sua mãe tinha pedido ajuda a um policial da comunidade, um tipo mal encarado que vivia dando em cima da Ana. Tinham armado tudo contra ela.
— Tu num tem jeito, mãe. Eu vou acabar na cadeia por tua causa.
As duas ficaram em silêncio, encarando-se com hostili- dade, até que Ana perguntou:
— Cadê a Rose?
— Tá aqui não. O Proença levou ela, no mesmo dia que tu sumiu.
— Ela deve tá num hospital. Tenho de pegar o endereço, droga.
— Deixa ela por lá. É melhor assim. Ela dá muito trabalho.
— Num fala assim, mãe. Ela não tem culpa. E Valdo?
— Num vejo a cara dele faz tempo.
Ana se afastou da mãe. Tinha perdido três dias de trabalho. Precisava procurar suas patroas e se explicar. Onde estaria seu filho? Ela não tinha mais mando nenhum sobre ele. E Rose? Seria bom se ela pudesse ficar numa instituição, bem cuidada. Devia mesmo procurar um juiz, pensou. Já Valdo não tinha mais jeito. Com 13 anos estava no mau caminho.
A vida de Ana sempre foi muito dura. Era a caçula de seis irmãos que tinham ido embora, aos poucos. Nunca voltaram – nem para uma visita.
Ela ficou com a carga do pai e da mãe. Acabou se juntando com um homem bem mais velho, mas que tinha uma birosca na beira da estrada e ganhava algum dinheiro fixo. Dele só conseguiu os dois filhos que ele lhe fez e muita pancadaria. Ele gastava quase tudo que ganhava bebendo com os amigos. Em casa, era um inferno. Quando não tinha comida, Ana apanhava. Quando ele bebia, Ana apanhava. Quando ele um dia sumiu, ninguém sentiu falta. O pai de Ana ficou tocando a birosca até que foi obrigado a acabar com o negócio por causa do aumento da violência na região.
Ana tinha muitas coisas a resolver. Arrumou-se, disposta a procurar as patroas e retomar a rotina. Tirou de seu esconderijo um dinheiro para emergências – 15 reais.
Voltou para casa tarde da noite. Agora só tinha três das cinco faxinas semanais.
Compareceu à delegacia no dia marcado. Ninguém sabia lhe informar nada. Não havia nada sobre Ana, a filha, o interrogatório. Mas não foi tempo perdido. Deu uma dura num comparsa do Proença e descobriu onde Rose estava. Foi até lá e encontrou a filha jogada numa maca dura e fria, encostada num corredor, no meio de muita gente com todo o tipo de doenças, acidentes e problemas. Rose estava amarrada pelos pulsos às grades da cama. Magrinha, olhar perdido, quieta – parecia só ter forças para respirar. Ana se aproximou da filha, chamou-a pelo nome e disse que ia levá-la para casa. Soltou as mãos da menina, vestiu-a com as roupas que tinha levado e pegou-a no colo. Saiu do hospital sem ser incomodada.
Conseguiu carona até perto do atalho. O resto do caminho teria que ser feito a pé. No meio da picada, Ana embrenhou-se pelo mato e foi se sentar à beira de um grande buraco causado pela erosão. Quando menina, gostava de ir para lá com a garotada. Ficavam jogando pedras para dentro do buracão. Ana adorava ouvir o barulho que faziam quando atingiam a água.
Estava anoitecendo e escurecendo rapidamente. Com a filha aninhada em seu colo, ficou contando coisas. Falou de sua vida, dos problemas com o companheiro, das brigas, surras e chutes durante a gravidez, e do nascimento de Rose – um bebê doente, com sérios problemas neurológicos. E, com essa cantilena, Rose adormeceu.
Ana, com a filha agarrada em seus braços, relembrou a última vez em que estivera naquele lugar. Fazia oito anos. Tinha sido levada à força pelo marido bêbado. Ele, num ataque de raiva e ciúme, tinha abusado dela bem ali – para nunca mais. Quando ele se deu por satisfeito e se aquietou, vencido pelo cansaço e pela bebedeira, ela agiu rapidamente. Arrastou-o para a beira do buracão e o empurrou. Ele rolou e sumiu na água escura. Seu sumiço não deixou saudades. Era um tipo muito mal visto nas redondezas.
Ana ficou muito tempo repassando coisas de sua vida. Quando teve certeza de que Rose dormia profundamente, num movimento forte e brusco, empurrou a filha para dentro do buraco. Em segundos e com um mínimo de ruído, a menina desapareceu no meio das folhas e galhos. Ana ou- viu quando o corpo atingiu a água.
Retomou o caminho de casa, inicialmente trôpega e ofegante.
Na manhã seguinte, Ana se despediu da mãe dizendo que ia ser caseira no sítio de uma de suas patroas e que Rose ia poder morar com ela.
Prometeu voltar assim que pudesse.
Conto do livro A Dança das Letras