A demora
No dia em que fiz sete anos, nos mudamos para uma vila no Engenho de Dentro, e conheci o Seu Zezinho. Quer dizer, primeiro vi a cadeirinha de balanço e só depois o Seu Zezinho. Foi assim: entramos na vila e percebi a pequena cadeira de balanço na porta de uma das casas. Só depois é que vi um homem pequeno enfiado na cadeirinha de criança.
Era uma vila com uma rua central e quatro casas de cada lado. A nossa era a segunda do lado ímpar, colada na da cadeirinha. Larguei meu casaco em cima de umas caixas de papelão e deixei meus pais tratando da mudança. Só pensava em ver a cadeirinha mais de perto. Ao me aproximar, Seu Zezinho levantou os olhos, levou um dos indicadores aos lábios num pedido de silêncio, e disse baixinho, esperando, esperando. Aquela foi a única vez que ele se dirigiu a mim.
Ele passava os dias na cadeirinha, olhos soltos no espaço, se balançando suavemente. Cochilava na cadeira, olhava pro céu na cadeira, suspirava na cadeira, mas não falava com ninguém. Era levado para dentro de casa para almoçar, para dormir e creio que para ir ao banheiro, pois nunca o vi fazer xixi na rua. Eu ia para o colégio de manhã, bem antes de Seu Zezinho ir para a calçada. Mas, na volta, lá estavam os dois, Seu Zezinho e a cadeirinha, no lugar de sempre. Ele mora com o irmão e a cunhada, nos disse a costureira da vila. Quis saber mais, mas minha mãe me repreendeu dizendo que não me metesse em assuntos de adulto.
Tempos depois, soube que Seu Zezinho era o dono da confeitaria da praça e que tinha perdido sua mulher e filha num incêndio provocado por um vazamento de gás num dos fornos.
Depois dos enterros, das missas e do recolhimento inicial do luto, ele passou a ficar na cadeirinha na porta de casa. A cunhada de Seu Zezinho, muito paciente, conseguia faze-lo entrar para ir dormir, ou para se abrigar das chuvas e do mau tempo. Sussurrava coisas em seu ouvido, ele ia cedendo e se deixava levar. Todos os dias era a mesma coisa. Não sei que idade ele tinha. Para mim, todos os adultos eram velhos.
Aquele homem me intrigou desde o primeiro momento. Queria conversar com ele, fazer perguntas, ouvir respostas. Não conseguia entender uma pessoa inteiramente calada. Assim que pude, levei meus brinquedos para perto dele, para atrair sua atenção. Nada. Mas não desisti. Imaginava-o fazendo parte de tudo e passei a brincar diariamente com ele e a cadeirinha. Cheguei a ler livros infantis para os dois. Viraram personagens de minhas fantasias, desempenhando vários papéis. Seu Zezinho sempre fechado em seu próprio mundo.
Fui crescendo, incapaz de passar por ele sem falar alguma coisa. Se estivesse excitada com alguma novidade, ia logo lhe contar: ganhei uma bicicleta, fui ao cinema ver um filme maravilhoso, vamos passar as férias num hotel fazenda, coisas assim. No final da minha adolescência, fiz do Seu Zezinho meu analista. Contava coisas, repassava fatos, analisava tudo com ele. Sempre gostei de falar sozinha, mas tinha que me conter pra não pensarem que eu era maluca e pra não ficarem sabendo de tudo o que se passava na minha cabeça. Com Seu Zezinho era diferente. Podia dizer tudo e ele sempre me ouvindo, me deixando falar sem censuras, críticas ou interrupções. Quando comecei a namorar o Pedro, fui correndo lhe contar: encontrei o meu companheiro, a minha metade.
Morei na vila dos sete aos vinte e cinco anos. Nunca vi outros moradores puxarem conversa com Seu Zezinho. Quando muito, soltavam um bom-dia e boa-tarde no ar, sem diminuirem o passo ou esperarem resposta. Eu não conseguia passar por ele sem parar e mostrar que sabia que ele estava ali. Acho que ele me seguia com os olhos quando eu me afastava. Por pouco tempo, mas seguia. As outras crianças da vila tentaram implicar com ele, mas como não havia reação, desistiram.
No dia da minha colação de grau, parei bem em frente à cadeirinha com um Seu Zezinho muito mais magro, cabeça toda branca e olhar desbotado. Disse que tinha me formado e que já tinha duas propostas de trabalho. Eu falava e procurava em seu semblante alguma reação. Acho que vi o começo de um sorriso, mas posso ter imaginado. Tive vontade de lhe dar um beijo, mas me contive.
Uma semana depois, Seu Zezinho morreu. Nesse dia, tinha saído cedo para tratar de alguns assuntos e voltei tarde. Na manhã seguinte, minha mãe me contou o que tinha acontecido. Disse que a cunhada tinha feito tudo igual: colocou-o com a cadeira na calçada depois do café da manhã e ficou vigiando da janela. Perto da hora do almoço, ela ouviu um vozerio. Foi ver o que era e viu Seu Zezinho de pé gesticulando e falando alto demorou muito, demorou muito. Mas não havia ninguém por perto. A cunhada se aproximou, viu quando ele caiu no chão e correu para acudir. Ele, no chão, murmurava coisas sem sentido até parar de todo, num último suspiro.
Chorei muito. Eu gostava dele, da cadeirinha, dos dois na calçada.
A cunhada quis que eu ficasse com a cadeirinha. Recusei. A cadeirinha sem o Seu Zezinho!? Vi quando o lixeiro a levou pendurada na lateral do caminhão. Aos balanços, ela se despedia de mim.
(página 41 do livro de contos A Dança das Letras, memórias e histórias)