A Dança das Letras
Aprendi a ler e a escrever com cinco anos e sem a ajuda de ninguém. Não que me lembre de tal proeza. É que aceito como minhas muitas das lembranças que os mais velhos me passaram — preciso ter um passado. Então, não me lembro do seguinte: lia, escrevia e desenhava bem, desde muito pequena.
Morávamos em São Paulo — papai, mamãe, eu e um tio que tinha ido para lá estudar Artes Gráficas. Eu o adorava e sempre dava um jeito de ficar por perto enquanto ele trabalhava em capas de livros, cartazes e folhetos publicitários, cercado de lápis de cor, tintas e pincéis. Era tudo fascinante. Para que eu não o atrapalhasse demais, ele me dava sobras de papel e alguns de seus lápis e tintas. E eu trabalhava com muita concentração, interessada nas possibilidades formais que os gestos me traziam, encantada com o que os diferentes materiais tinham a me oferecer. Observava os contrastes acontecerem no papel e comentava: assim fica claro e assim fica escuro. E seguia desenhando o pequeno, o grande, buscando o liso ou o áspero, o tempo todo irradiando, em voz baixa, minhas pequenas descobertas.
Quando me dei conta da existência dos símbolos, das muitas famílias de letras e das várias formas de grafia, me apaixonei. Enchia páginas inteiras com uma única letra, fazendo e desfazendo sua forma, invertendo-a, espelhando-a ou diluindo-a em fios de cores intermináveis. Usava til, cedilhas e os acentos como e onde queria: acima ou abaixo de vogais ou consoantes, indistintamente. E um dia, sem que eu mesma percebesse, estava lendo.
Espantados, meus pais quiseram saber como eu tinha aprendido.
— Não sei. As letras falaram dentro da minha cabeça, respondi.
As letras e palavras, antes formas fluidas e silenciosas, tinham adquirido voz. O sentido se impusera, transformando minha percepção. Foi ótimo descobrir o mundo dos livros, viver aventuras, ter medo das bruxas e lobos maus.
O chato é que passei a ser ainda mais o centro das atenções. Meus pais adoravam me exibir para os adultos, pedindo para eu ler trechos em voz alta. Depois de dar vários des- ses espetáculos, comecei a evitar o constrangimento. Se chegasse uma visita, saía de fininho lá para o fundo do quintal e me empoleirava na goiabeira para ler um livrinho em paz.
Meses se passaram e chegou um dia temido, mas muito desejado: o primeiro dia de aula. Não foi fácil, disso me lembro bem. Sabia muitas coisas que meus colegas ainda tinham que aprender, mas não sabia viver em grupo. Custei a me ajustar ao tempo dos demais. Mas acabei gostando da professora e das brincadeiras na hora do recreio. Aprendi a ser mais tolerante. Se me entediava, recorria aos desenhos ou à invenção de histórias, fantasiando coisas.
Mas não cheguei a ficar nem um ano nessa escola. Uma tarde, sem mais nem menos, meu tio apareceu no colégio e me levou para casa. Disse que papai tinha sofrido um acidente e mamãe precisava de mim.
Minha casa estava cheia de gente que eu não conhecia. E todos se viraram para mim quando cheguei. Corri para a Dodô, minha babá, e escondi meu rosto em seu uniforme. Ela me levou até minha mãe — que nem me olhou e continuou chorando e gritando coisas sem nexo. Eu estava com medo, queria o meu pai. As pessoas conversavam baixinho pelos cantos da sala. O avião bateu no morro. Explodiu no ar. Explosão? De que falavam? Meu tio me levou para o quarto e começou a contar uma história comprida sobre acidentes que machucam muito as pessoas e elas não conseguem sarar. Titio continuou falando, mas eu não ouvia mais nada. Eu só pensava nos chinelos virados. Dodô sempre dizia que sapato virado era dono matado. Dias antes, derrubara sem querer os chinelos do papai. Eles caíram da janela e ficaram no jardim com as solas viradas para cima. E eu não consegui desvirá-los, a porta da rua estava trancada. Não queria entender. Papai morto? Corri para junto da minha mãe, me enfiei nos braços dela, dizendo foi sem querer, sem querer, sem querer. Ela ficou passando a mão pela minha cabeça. Naquela mesma noite fomos para o Rio, morar com minha avó.
Como num passe de mágica, desaparecera o meu mundo: meu pai, a casa, a goiabeira, o quarto, a escola. Adormeci em São Paulo e acordei no Rio de Janeiro, num apartamento na Urca.
A primeira saída em meu novo mundo foi uma ida ao cemitério.
O enterro de meu pai foi de caixão fechado. Mamãe pedia e implorava para que o abrissem. Não deixaram. Naquela hora, eu tive certeza de que o caixão estava vazio. Papai estava perdido em algum lugar, com amnésia. E, por anos, esperei pela volta dele. Cada toque da campainha reacendia minhas esperanças.
Foi o tempo das muitas e muitas visitas à minha mãe. Ganhei muitos livros e brinquedos, mas não lia nada para ninguém.
Passados uns dias, fui para minha segunda nova escola. Lá pelas tantas, a professora me pegou desenhando enquanto ela fazia os alunos repetirem as sílabas com a letra “bê” escritas no quadro-negro. Eu disse que já sabia aquilo tudo. Ela me fez ler uma página da cartilha de pé na frente de toda a classe. Foi um silêncio geral. Não satisfeita, ela me deu um livro aberto e pediu que eu lesse. Comecei a ler e a ouvir risinhos abafados. Achavam graça no meu modo de falar.
Passaram a me chamar de paulista, e também de órfã e bolsista. Me olhavam como se fosse uma marciana.
Mamãe, chamada à escola, foi convencida de que não podia continuar estimulando minhas leituras, sob o risco de meu rendimento escolar ser seriamente prejudicado. Resultado: passei a ser vigiada na escola e em casa. Sumiram com meus livros; só podia ler a cartilha e tinha que copiar os exemplos do caderno de caligrafia.
Sobrava tempo demais sem fazer nada. Em casa, eu ouvia pelo rádio as aventuras do Jerônimo e o moleque Saci. Na escola, desenhar era impossível, não com aquela professora de olho em mim o tempo todo. Então, me distraía tentando olhar para as letras e não ler, olhar para elas como eu fazia antes de aprender a ler, como aves voando, novelos se desfiando em fios e linhas para o infinito.
Acabei me acostumando com a vida de escola nova, bairro novo, quarto compartilhado com minha mãe, sem passeios de carro, sem viagens, sem nadar no clube enquanto papai jogava tênis e sem ter a atenção da minha mãe, que vivia em casa, mas costurando o tempo todo. Papai tinha levado muita coisa boa com ele.
Minha mãe não tinha mais tempo para conversas e brincadeiras, sempre ocupada com vestidos para terminar e freguesas para atender. Mesmo assim, eu a interrompia. Um dia, cheguei perto dela com a pergunta:
— Mãe, porque os sonhos nunca acontecem de verdade? Nos meus sonhos eu voo e ando no ar. Vejo através das paredes. Até fico um tempão debaixo d’água, nem preciso respirar. Faço tudo que quero.
— Filha, sonho é sonho. É sua imaginação.
— Então, não sei pra que a gente sonha se não vira verdade.
E ela me disse que alguns sonhos viravam verdade. Que quando crescesse eu comprovaria isso e encerrou o assunto com:
— Vem, vamos almoçar e tratar da vida. Tenho muito o que fazer.
Eu detestava essa história de “quando crescer”, de ter que esperar pelas coisas e de ter que fazer tudo o que mamãe queria. E me afastava resmungando para ela ouvir: todo dia a mesma coisa — dormir, acordar, comer.
Vinha a noite, eu sonhava novamente e acordava com pena de abandonar o estado de sonho, onde tudo era possível. Queria sonhar acordada, mas não conseguia, não dava certo. Fui ficando diferente, cansada dos livros. Queria realizar as minhas ideias. Minha mãe percebeu que eu estava distante, mais fechada, e quis saber o que estava se passando comigo.
— Mãe, eu queria poder voltar lá atrás, corrigir o que não deu certo e recomeçar, diferente.
Quase acrescentei que era para fazer o papai voltar. Mas me calei. E mamãe disse:
— Filha, você só vai sofrer pensando desse jeito. Para com isso. A vida não é assim.
Mas eu continuava querendo mandar em meu pensamento, nos sonhos, em tudo o que me dissesse respeito. Um dia, aproveitei que minha mãe tinha saído e a empregada estava ocupada na cozinha, fazendo um bolo para o meu aniversário de 10 anos e resolvi ver o que mamãe tanto guardava e protegia numa gaveta da cômoda. Encontrei muitas contas de luz, gás, telefone e recibos de aluguel e uma pasta de documentos. Nada de mais. Já ia pondo tudo de volta e fechando a gaveta quando resolvi abrir a tal pasta. E dei logo de cara com a certidão de óbito de meu pai. Com o coração aos saltos, consegui ler até “esmagamento do crânio” e dei um pulo pra trás, horrorizada. A pasta virou no chão e um recorte de jornal ficou visível. Da folha amarelada, papai sorria para mim junto às fotos de mais seis pessoas. E a reportagem dizia: “corpos carbonizados”, e “aliança no dedo anular com a inscrição “Mariana, para sempre”. Não consegui, não queria ler mais.
Enfiei tudo de volta na gaveta e me afastei daquela pasta infernal.
Mais tarde, minha mãe chegou e me encontrou deitada no sofá, no escuro. Eu disse que estava com dor de cabeça. No dia seguinte soprei as velas do meu bolo sem alegria. Estava vazia. Fiquei doente, tive febre e não fui à escola por uns dois dias. Não queria nada com ninguém. Queria ficar quieta, parada, achando que, se me mexesse, tudo voltaria a me incomodar, a me perseguir. Fechei-me numa concha.
Tristeza e insatisfação me levaram a tentar novamente olhar para as letras e palavras sem ler, apreciando as formas e seus volteios, ritmos e movimentos. Eu esperava dominar esse jogo em pouco tempo. A ideia era ir contra o ato inteli- gente de ler. Se conseguisse controlar o mecanismo mental que me fazia decodificar as palavras e os parágrafos, eu eliminaria o sentido. Queria não ler. Buscava entrar num estado de contemplação pura.
Mas, por mais que tentasse, era só bater os olhos em algo escrito e o sentido se fazia — rápida e implacavelmente. Tentei virar os textos de cabeça para baixo, mas conseguia lê-los mesmo assim. Experimentei olhar a palavra enquanto fazia barulhos com a boca, tentando confundir o cérebro com o som da voz e torná-lo mais lento. Não deu certo. Experimentei balançar a página impressa, sem sucesso. Inútil, as palavras pulavam aqui e ali. Por mais que me esforçasse, as letras se uniam. Continuei tentando, lutando contra a rapidez com que tudo se transformava em sentido. Fiquei obcecada, inventando várias técnicas para conseguir não ler.
Depois de muito tempo e de inúmeras tentativas frustradas, fui obrigada a me render ao fato de que ler era um caminho sem volta. O que se aprende não se desaprende.
Adoeci.
Foram meses de agonia para todos à minha volta. Minha derrota me custou caro. O ano letivo perdido e eu uma ostra, distante e quase inacessível. O jogo do não ler, além de impossível, era perigoso.
Deprimida, precisei de muito tempo, ajuda e tratamento para me abrir. Mas guardo coisas daquela fase. Só leio revistas em quadrinhos se antes eu cobrir de preto todos os balões com as falas. Quero as imagens sem o sentido explícito. Coleciono textos em chinês, japonês, árabe, aramaico, hebraico — só para apreciar a delicadeza daquelas escritas, como fios que dançam no papel.
Mudei novamente de escola, indo para o grupo escolar do município. A professora não me incomodava e os alunos não me estranharam. Voltei a estudar com afinco e recuperei o tempo perdido com facilidade. Na verdade, a única coisa que me interessava eram os estudos. Só lia livros técnicos ou didáticos, coisas que dissessem respeito diretamente às exigências do programa escolar. Não conseguia mais me lembrar de sonhos e não desenhava como antigamente — só conseguia copiar, mimetizando tudo nos mínimos detalhes.
Calada, pensativa e introvertida, fui entrando na adolescência. Crises de asma levaram o médico a me indicar natação e banhos frios como remédios certos para os meus males. Mamãe seguia à risca, e lá fui eu para a escola de natação do Forte de São João. Gostei do esporte solitário e do contato prazeroso com a água. Não gostava de competir, mas não cheguei a fazer feio. E nadando e estudando atravessei a adolescência.
Entrar para a faculdade foi a melhor coisa que podia ter-me acontecido. Lá conheci minha melhor amiga. Comecei a sair para o cinema depois das aulas, festinhas nos fins de semana e idas à praia para ser vista pela rapaziada. Aprendi a flertar, a conversar com os rapazes, a dançar e a me divertir em grupo. Eu até que gostava de tudo isso, mas adorava voltar para o silêncio e a quietude da minha casa.
Um dia, minha amiga chegou com a novidade de que ia se candidatar ao curso de teatro do Tablado. E acrescentou:
— Inscrevi você também. Temos que estar lá amanhã às dez horas.
Protestei, cheia de indignação:
— Tá maluca, não vou mesmo. Não vou perder aula de jeito nenhum.
Mas ela implorou, disse que precisava da minha força para poder enfrentar os testes. Acabei cedendo. Chegamos lá e havia uma fila enorme. Esperamos horas até sermos chamadas. Entramos quando o grupo anterior ainda estava no palco fazendo os testes. Sentamo-nos e fiquei vendo os jovens executando as tarefas pedidas: improvisar tal e tal situação, interpretar uma cena triste, uma alegre, expressar algum sentimento sem usar palavras, e muitas outras coisas. Fui arregalando os olhos e chegando para a ponta da cadeira, inteiramente tomada pelo que via acontecer no palco. Aquilo era o que eu fazia quando brincava com minhas letras, quando desenhava, quando lia e gostava das aventuras e dos seres e pessoas nos quais me transformava. Aquilo tudo fazia total sentido para mim. Ao chamarem meu nome, subi no palco e perdi a noção do tempo. Viajei. Me entreguei àquela brincadeira séria. Adorei tudo, cada minuto.
Voltei para casa em êxtase e desandei a falar com minha mãe. Ela estranhou toda aquela excitação, mas me deixou dizer tudo o que eu quisesse, sem me interromper. Eu pedia a ela que me deixasse fazer o curso de teatro, caso fosse selecionada. Mãe, nunca te pedi nada. Confia em mim. Sei o que estou fazendo. Para meu espanto, mamãe concordou com tudo, sem discussão.
Anos depois, ela me disse que naquele dia, assim que comecei a falar sobre o curso e os testes, o “não” já estava pronto na ponta da língua dela. Mas, para o brilho intenso que ela viu nos meus olhos só havia uma resposta.
Iniciamos o curso. Foram tempos maravilhosos, apesar das dificuldades e do trabalho por vezes exaustivo. Minha amiga desistiu depois de um ano. Eu nunca mais larguei o teatro. Encontrara ali o sentido para tudo em minha vida. Todas as possibilidades de renovação constante, pelas quais eu ansiara desde sempre, se materializaram no palco. É o meu espaço, onde os sonhos podem de fato acontecer.
Passados anos, sinto-me feliz e realizada mesmo tendo levado uma vida dura e trabalhosa. Houve sacrifícios, mas tenho os sentimentos em ordem, claramente reconhecidos por mim. Posso ser muitas sem deixar de ser eu mesma.
E aqui estou num camarim, sendo maquiada e preparada para receber um prêmio pela minha peça, A Dança das Letras. Imprensa, público e críticos me elogiam por tratar as letras como seres vivos, com sentimentos e personalidades distintas. Mas elas são assim, sempre soube disso. Só faço entrar em seu mundo silencioso e discreto e, através dos gestos, revelar a todos como elas sempre se mostraram para mim.
Conto do livro A Dança das Letras