Bola pra frente
Desde que nasci, o futebol me persegue. Não poderia ser diferente, sendo filha de Seu Everardo, um flamenguista doente que usava vermelho e preto até na hora de dormir.
Papai nasceu num subúrbio do Rio, num enclave rubro-negro. Passou a infância jogando bola na rua. Driblava muito bem e tinha uma pontaria certeira. Aos dezoito anos, foi trabalhar numa fábrica de sabão na Penha. Em pouco tempo, era o artilheiro do time. Viveu seus dias de glória jogando pelo Penhão. Mas não conseguiu se profissionalizar, como era seu sonho.
Antes de papai conhecer minha mãe, sua vida se resumia ao trabalho e às peladas no campinho do bairro. Algumas idas ao Maracanã para ver o Flamengo jogar e eventuais jogos amistosos em cidades vizinhas completavam sua rotina, que não existia sem seu radinho de pilha, sempre ligado nos jogos do campeonato carioca. Tudo mudou, porém, quando o Sindicato dos Operários da Indústria Saponácea promoveu o seu próprio campeonato entre fábricas do Estado do Rio. Quando o Penhão foi jogar em Campo Alegre, no norte fluminense, meu pai conheceu Elvira, minha mãe.
Ela era filha do marceneiro da cidade. Foi amor à primeira vista. Namoraram, noivaram e se casaram em quatro meses. Ao ver que o namorico era sério, vovô ofereceu emprego ao meu pai, na marcenaria. Viúvo, não queria que sua única filha fosse morar longe.
Papai levou para Campo Alegre sua loucura pelo Flamengo e a paixão pelo futebol. Muito comunicativo, logo cativou um grupo de rapazes que ficavam à toa pela praça e os desviou para o campinho que ficava atrás da Igreja das Mercês. As peladas começaram a acontecer nos fins de semana e, depois que a coisa pegou, quase que o tempo todo.
O padre não ficou nada satisfeito. Se, por um lado, seu rebanho tinha encontrado uma atividade louvável e promotora da boa saúde do corpo e da mente, a zoeira, a gritaria e os palavrões que passaram a entrar igreja adentro atrapalhavam muito o andamento das missas e a boa concentração na hora das confissões. Ele mesmo se confundiu várias vezes, perdendo o fio da meada, e vendo seu sermão do dia deixar de atingir suas metas moralizadoras. Mas as peladas se impuseram — é que os filhos do prefeito faziam parte do time.
Papai batalhou muito e conseguiu fundar o A.A.R.N. — Associação Atlética Rubro-Negra. Ele era presidente, técnico, preparador físico, relações públicas, tudo. A Associação vingou e logo o time de futebol passou a ser conhecido como Arne.
Como não podia deixar de ser, as cores do Arne eram vermelho e preto. Mas só apareciam no escudo pintado numa tabuleta na entrada do campo. O time não tinha uniforme, item caríssimo naqueles dias, e as atividades locais não exigiam formalismos. Chuteira? Para quê? Jogavam descalços, esfolavam os pés com orgulho e alegria.
Um dia, o Arne foi convidado para jogar em Cachoeira, contra o time da mineradora local. Papai gostou, mas ficou cabisbaixo. Como poderiam disputar um campeonato interurbano sem uniforme oficial? Tentou angariar fundos para a compra do uniforme, mas não conseguiu. Na verdade, mesmo que conseguisse a quantia necessária, não haveria tempo para mandar fazer as camisas, meias e tudo mais. O uniforme oficial teria que ficar para depois. Conformado, papai decidiu que o time jogaria com calção preto e camiseta vermelha, sem escudo no peito e sem número nas costas. As meias seriam brancas e cada um teria que se virar para conseguir um par de chuteiras ou congas pretos.
Mal dormido e cansado, saiu cedo para tocar os assuntos do amistoso antes da jornada de trabalho. E mamãe passou boa parte da manhã cismando. Sabia que a solução encontrada não tinha deixado papai feliz. Teve a ideia de fazer uma camisa para o time. Mostraria o modelo quando ele chegasse para almoçar, e, se aprovado, ela faria as outras. Se trabalhasse muito, e com a ajuda das outras mulheres, em menos de uma semana os uniformes estariam prontos com escudo bordado e número nas costas.
Sem perda de tempo, saiu e comprou duas camisetas, uma preta e uma vermelha. Cortou as camisetas na diagonal, da lateral esquerda subindo em linha reta até o meio do ombro direito. Costurou a metade preta de uma na metade vermelha da outra. Terminou a tarde com duas camisas — uma com o ombro esquerdo vermelho e o direito preto. A outra era o inverso da primeira. Improvisou um escudo de papel, igual ao escudo do Flamengo, e desenhou as iniciais do Arne.
Papai adorou as camisas. Dava saltos de alegria. O Arne tinha uniforme — o diagonal rubro-negro.
Naquela tarde, as mães, irmãs e namoradas dos jogadores do Arne se reuniram e mamãe expôs o problema. Elas toparam o desafio de uniformizar o time em cinco dias. A mulherada de Campo Alegre nunca trabalhou tanto e com tanta liberdade. Dedicaram-se exclusivamente à confecção das camisas. Os maridos, pais, filhos e namorados as deixaram em paz e até ajudaram um pouco nas tarefas caseiras. Ninguém reclamou da comida, da falta de roupa limpa e nem das noites sem chamegos. Os escudos e números seriam bordados à máquina por Dona Camélia, que fazia milagres na máquina de costura.
Na véspera da ida para Cachoeira, os uniformes ficaram prontos — e muito bonitos: dez camisas de ombro esquerdo vermelho, as oficiais. E dez camisas de ombro esquerdo preto, o segundo uniforme. O goleiro jogaria vestido de vermelho.
O fato de estarem estreando o uniforme do Arne fez com que o time jogasse como nunca. Foi uma goleada histórica — 10 x 1 no C.A.C, o Cachoeira Atlético Clube. Quando nasci, nove meses depois desse jogo inesquecível, ainda comentavam no bar do Bira os lances de gol e os passes perfeitos — e nunca perdoaram o Jurandir por ter feito um pênalti no final do jogo, dando ao CAC a chance do gol de honra. Coitado, não sei se pela pressão, chacotas e críticas, acabou saindo da cidade.
Papai e mamãe viveram felizes até a morte dele em 1987. Dois meses depois mamãe morreu. Não aguentou de saudades. Tiveram sete filhos: seis homens e eu, a caçula. Meus irmãos ganharam nomes de craques do Flamengo: Leônidas, o primogênito, em homenagem ao grande Diamante Negro, mesmo meu irmão sendo um branquelo sarará. Depois, vieram o Zizinho, o Juvenal e os gêmeos Dequinha e Joel. Foram cinco filhos em menos de cinco anos. Filhos do pós-guerra, como papai gostava de falar, por terem nascido entre 1949 e 1952. Em 53, mamãe perdeu um bebê, outro menino, e, no ano seguinte, nasceu meu sexto irmão. Na hora de escolher o nome, meu pai quis homenagear um grande goleiro paraguaio que estava defendendo o Flamengo como ninguém: Sinforiano Garcia. Mamãe protestou. Homenagear paraguaio era demais. E como ela iria chamar o filho? Que apelido iam inventar para um nome daqueles? Sanfona? Não, não e não. O menino se chamaria José.
Quando papai chegou em casa com o registro do bebê, mamãe leu a certidão, jogou-a para o lado e não disse nada. Sempre chamou o filho de Zé, apesar do menino ter sido registrado como Garcia Sinforiano. Engraçado é que quando ele aprendeu a ler e escrever, só assinava Garcia S em todos os trabalhos escolares. Em pouco tempo, toda a cidade o chamava de Garcias.
Quando eu nasci, minha mãe disse que fazia questão de ir ao cartório com papai para registrar meu nascimento. Meu nome seria Rita Aparecida. Rita, por devoção à Santa. Aparecida, por eu ter nascido no dia de Nossa Senhora Aparecida — 12 de outubro. Papai ouviu calado. Mas, assim que pôde, escapuliu e fez sozinho o registro. Voltou para casa com mais uma homenagem ao Flamengo: Preta Rúbia. Mamãe ficou um mês sem falar com ele. Acabou sendo perdoado, mas ela sempre me chamou de Ritinha.
A essas alturas, vocês podem muito bem imaginar como foi minha infância. Rodeada por sete homens e tendo que encarar futebol de manhã, de tarde e de noite. Mesmo não querendo, aprendi tudo sobre o jogo. Domingo era dia de aulas extras: meus irmãos e papai ouviam as transmissões dos jogos pelo rádio e viam na televisão os videoteipes dos jogos que tinham sido acompanhados pelo rádio horas antes. Continuavam grudados na telinha assistindo o programa “Resenha Esportiva Facit”, uma mesa-redonda coordenada por Luís Mendes, com a participação de José Maria Scassa, João Saldanha, Nelson Rodrigues e Armando Nogueira — as enciclopédias do futebol, como papai gostava de falar.
Naquela época, os programas de tevê eram longos e lentos. Era uma televisão bem mais generosa, chegavam até a aprofundar alguns assuntos. Na “Resenha Esportiva”, por exemplo, os jornalistas comentavam os jogos, mas deixavam surgir outros assuntos, com brilhantismo e erudição. Implicavam uns com os outros, num humor fino, cheio de tiradas fantásticas. Houve um dia em que Nelson Rodrigues começou a se orgulhar do Fluminense por uma vitória santa do tricolor. Scassa o interrompeu: a vitória se devia à competência da equipe e não tinha nada a ver com religião. Nelson prosseguiu como se não tivesse sido interrompido, mas encerrou o assunto coma seguinte pérola: Vejam só, amigos. O Scassa está querendo proibir a entrada de Deus no Maracanã, como se Ele fosse um carona abominável. A partir desse dia, mamãe virou fã da “Resenha”, não perdia uma.
Com tudo isso, assim que me vi adolescente, procurei me afastar o máximo que pude do futebol. Não namorava quem gostasse, jogasse ou aceitasse ver uma partida sequer de futebol, em hipótese alguma. Foi difícil, mas conheci o Nando — um mecânico apaixonado por carros. Essa paixão me proporcionou passeios interessantes e divertidos. Ajudei Nando a testar vários serviços realizados nos mais diversos modelos de automóvel.
Minha infância, porém, foi dominada pelo futebol. Meus irmãos também jogaram no Arne. Aliás, eles viviam batendo bola em qualquer lugar. Estavam sempre dispostos a treinar chutes ao gol, na marca do pênalti ou em locais de possíveis faltas. Eram chutes de escanteio, tabelinhas e tudo que pudessem imaginar. E quem ficava no gol? Eu. Me obrigavam a ficar “só um pouquinho”. Quando eles chegavam em casa com bala de jujuba, eu já sabia que seria goleira por muitas horas.
E foi assim que me tornei uma excelente goleira. Meus irmãos me chamavam de Caniço por eu ser alta, magra, de quadris estreitos e pouco busto — quase uma tábua. Era a segunda mais alta dos sete irmãos, com 1,79m de altura. Criada no campo, nadando em riachos, subindo em árvores e correndo para lá e para cá, eu era forte e ágil. Meus manos me treinaram muito bem, agarrava um bolão. Mas, mulher não jogava no Arne — graças a Deus!
Até o dia em que o Arne precisou de mim. Foi num domingo em que eu e Nando tínhamos ido ver um carro numa fazenda próxima. Estávamos lá, conversando com o proprietário, quando o Dequinha e o Garcias chegaram esbaforidos. Me levaram para o lado, para longe dos ouvidos de Nando, e me imploraram para assumir o gol naquela tarde. O goleiro estava com uma diarreia braba e o Arne estava programado para jogar em Itaoca, pertinho de Campo Alegre. Seria a primeira de três partidas valendo uma oficina de lapidação. Quer dizer, a cidade que ganhasse a disputa doaria o terreno para uma mineradora que montaria no local um centro de lapidação com formação de profissionais e vários outros benefícios para a comunidade. A cidade do time vencedor ganharia um pacotão. Sou mulher, não posso jogar, argumentei. Podia, sim. Não era jogo oficial e o nosso não era um time de profissionais. Eram todos amadores. Papai já tinha se informado, eu poderia jogar. Os organizadores do evento já estavam sabendo de tudo. Só dependia de mim. Mas, e o segundo goleiro? Viajou, problemas de família. E Dequinha acrescentou: Você joga com o nome de Caniço. Ninguém vai perceber que nosso goleiro é uma moça. Esconde teu cabelo com um gorro e o uniforme esconde o resto.
É, esse jogo acabou sendo minha carta de alforria, me livrou do futebol. Faltando dois minutos para o final, que ganhávamos de um a zero, o Joel derrubou o atacante do Itaoca e o juiz marcou pênalti. Tremi. O time e Campo Alegre em minhas mãos. Fechei os olhos e rezei como nunca. Precisava me concentrar. Uma dica de papai me veio à mente, incline o corpo ligeiramente para um lado. O cara vai pensar que você vai cair para este lado e chuta para o outro — o lado, para onde você vai realmente cair. Decidi que faria isso, e pedi à Santa Rita que fizesse o jogador do Itaoca cair na armadilha. Defendi o pênalti. O juiz apitou o final da partida e eu fiquei famosa.
Todos ficaram sabendo quem era o Caniço. Durante muito tempo, só se falou nesse jogo sensacional. O Arne também ganhou o jogo seguinte, disputado em Campo Alegre, e a oficina de lapidação foi para a minha cidade. Oficina de Lapidação Santa Rita — foi como papai conseguiu que me homenageassem, indiretamente. O nome Caniço não ficava bem, e muito menos Preta Rúbia Medeiros da Silva.
Depois desse lance de sorte, meu pai e meus irmãos respeitaram minha vontade de ficar longe do futebol jogado, falado ou ouvido. Seguiram-se anos de vida tranquila, de sossego absoluto. Nando e eu nos casamos e fomos morar em Cachoeira, numa casinha perto de um riacho. Tivemos duas filhas.
Agora, passados alguns anos, o futebol voltou para junto de mim. E eu gostei. Estava com saudades dos gritos de gol, da correria, das brigas e confusões. A barulheira que a garotada faz se divertindo me trouxe ótimas lembranças dos meus tempos de menina. Incrível como nada mudou. Continuam dando bicos e partindo para as canelas. Não passam a bola, só pensam em fazer gol e acham que podem resolver tudo sozinhos.
Foi muito bom eles terem vindo para cá. Estava cansada de descansar em paz. Se eu pudesse, teria ficado o tempo todo vendo a gurizada jogar. Impossível. Minha terceira gravidez, tubária, foi detectada tarde demais. Morremos eu e o bebê, um menino.
Meus irmãos conseguiram uma licença especial e eu estou enterrada perto de minha árvore preferida, nas terras do meu avô. Com o passar do tempo, Campo Alegre cresceu para o lado de cá. O pasto enorme agora é o campo de peladas. Que bom! É isso aí, galera, bola pra frente.
Conto do livro A Dança das Letras