Cloviska 

Andava eu por uma rua tranquila do subúrbio, daquelas que fazem a gente se lembrar como se morava antigamente. As casas antigas, com pequena varanda na entrada, ornadas com samambaias choronas, as longas folhas encortinando os arcos e filtrando nossa possibilidade de ver o que acontecia em seus interiores. O perfume de jasmins, manacás e rosas vinha me acompanhando, transformando uma caminhada sob o sol num passeio delicioso pelo passado. Parecia que eu estava na minha rua no Grajaú, meu cenário de infância, nos idos anos cinquenta.

Embevecida, navegando em meu passado despertado pela rua, seu casario e seus aromas, escapei de ser atingida, talvez fatalmente, por uma tevê arremessada do segundo pavimento de uma das pacatas residências. O que me salvou foi estar sem pressa e com muita calma contemplativa. 

Vi um aparelho, dos antigos, com tubo de imagem protuberante, espatifar-se na estreita calçada a poucos passos de mim. O estrondo foi enorme, atraiu muitos olhares curio- sos das janelas próximas. Na casa de onde partiu o petardo, vozes altas e briguentas podiam ser ouvidas até por uma pessoa surda. Gritaria, muita. Um adolescente saiu da casa em rebuliço e começou a catar os pedaços do aparelho de televisão, jogando tudo dentro de um grande saco de plástico preto. Passados alguns segundos, sentiu minha presença congelada e me olhou, espantado. Meu avô está doente, agora deu pra jogar tudo pela janela. Desculpe. Eu, sem conseguir me mover, ainda em choque. Acho que nem estava piscando. O jovem parou de coletar os destroços, levantou-se e veio pra perto. A senhora quer água, quer entrar e se sentar, posso lhe ajudar? E me pegou pelo cotovelo, me conduziu para dentro da casa, para uma poltrona. Chamou a mãe, pedindo água para mim. A tevê quase caiu em cima dessa senhora, ela está assustada. Ganhei muita atenção e carinho. Fiquei sabendo que o velho patriarca estava com demência e vinha aprontando, deixando a família em polvorosa. Ele precisa ser internado, mas não temos como arcar com as despesas. O cui- dador faltou hoje, aí acontece de tudo. 

Para tranquilizá-los, resolvi contar sobre Cloviska, um dos meus tios maternos. Claro que esse não era seu nome. Era como nós, sobrinhos, o chamávamos, por ele ser fã as- sumido do comunismo e da, então, União Soviética. Ele não sabia nada de russo mas colecionava exemplares do jornal soviético Pravda. Sempre que possível, falava horrores dos Estados Unidos, na opinião dele um país imperialista que só tinha gângsteres — mal pronunciava a palavra de propósito, para avacalhar o idioma anglo-saxão. 

Era uma grande figura. Solteiro convicto, morava com minha avó. Excelente contador de histórias, inventava mundos incríveis, nos quais o grande herói era Fenélon, viajante do espaço sideral. Ia de planeta a planeta em sua motoci- cleta voadora. Ouvi muitos e variados episódios, cantando com meu primo e irmãos, sempre que podíamos, o refrão “a bunda do Fenélon é fria como chicabon”. Sentíamos Fenélon voando célere pelos anéis de Saturno, fugindo de meteoros, solto e livre em ladeiras da Via Láctea, ou perseguindo la- drões que tinham roubado o Cinturão de Orion, o caçador. Mintaka, Alnilan e Alnitak, as Três Marias, gritando por so- corro. Um delírio. 

Mas meu tio tinha suas dificuldades. Quando criança, teve gripe espanhola que, se não o matou, o deixou gago. Gaguejava ao iniciar frases mas, passado o primeiro esforço, prosseguia normalmente. A gagueira o deixou inseguro, acomodado numa repartição pública, sem poder levar seu brilho para outras atividades profissionais. A insegurança mexia muito com ele. Assuntos ligados a ciências exatas, literatura, política, ele dominava com facilidade. Porém, controle de máquinas, equipamentos fotográficos, qualquer objeto que viesse acompanhado de um manual de instruções virava algo ameaçador. 

Um dia, ele chegou em casa todo feliz com a câmera comprada: uma Leica M3! Levou horas lendo o manual, 

conseguiu entender algumas coisas, mas outras ficaram lhe atucanando a mente. Como colocar a bobina do filme den- tro da máquina? Nã-não con-consigo prender o filme. Co-como é, Serginho? Muitas e muitas vezes, meu primo foi o assistente de fotógrafo de nosso tio. Sergio, morava na mesma casa, era criado por nossa avó. Quase todas as vezes, o tio queria saber como se usava o fotômetro, como decidir sobre a velocidade a ser usada, ou o diafragma a escolher. Como fazer para desfocar o fundo e focar somente no pri- meiro plano. Quando os sobrinhos-assistentes estavam por perto, tudo corria às mil maravilhas. Mesmo assim, depois do filme revelado, podiam surgir fotogramas totalmente negros por excesso de entrada de luz na hora da exposição ou problemas com a escolha da velocidade do disparador, questões de foco e nitidez. Um desastre! Ele ficava possesso. Praguejava em seu melhor gaguês, atirando a máquina sobre a cama, vo-vou jogar essa bosta fora! Nã-não presta, nã-não vale nada. A raiva passava e a câmera era guardada cuidadosamente em seu estojo de couro dentro do guarda-roupas, à espera de uma nova empreitada. 

Tempos depois, ele, um amante de música clássica, comprou um conjunto de rádio e toca-discos da Motorola. Uma vitrola. Era um móvel de madeira clara, talvez pau-marfim. Tinha o formato de uma caixa retangular sobre quatro pés-palito. A caixa tinha duas portas: a mais estreita, à esquerda, protegia o compartimento do rádio AM/FM, e a outra, mais larga, protegia o local onde ficava o toca-discos. Era dos melhores equipamentos para se ouvir música naquela época. Mas, tinha manual de instruções. 

Lembro-me bem que um outro tio, irmão mais novo de Cloviska, se reuniu com ele e interpretou o manual, mostrando, passo a passo, como ligar, como colocar o LP, como marcar “repetir” para que o mesmo LP tocasse sem parar. Tio Zeca mostrou como empilhar vários LPs para que todos tocassem em sequência. Ensinou tudo, mas Cloviska, como sempre, não reteve quase nada na memória. Tio Zeca, oficial do Exército, não podia estar lá o tempo todo. Vivia mais em Deodoro, indo em casa só de vez em quando. Os sobrinhos-assistentes precisaram aprender tudo, o que fizemos com rapidez e facilidade. Nós gostávamos de ajudar o tio pois era um modo de metermos a mão na massa, de fazermos coi- sas que os adultos faziam e geralmente negavam às crianças. Tínhamos dez/treze anos, no máximo. Mas, não estávamos lá o tempo todo. Serginho era semi-interno no Colégio São Bento. Eu e meus irmãos morávamos a uns 300 metros da casa da vovó e tínhamos obrigações escolares que nos mantinham afastados. Mas, ajudávamos nos fins de semana. 

Cloviska tirou férias, decidido a aproveitar ao máximo a sua vitrola. Sabia que não poderia contar com a ajuda de sua mãe que só entendia de bolos, assados e comidas. De câmeras e toca-discos ela não sabia nada e nem queria saber. Ele teria que se virar sozinho. Passou os primeiros dias tran- cado em seu quarto, fazendo uma recuperação ligeira das instruções contidas no manual da Motorola. Depois, foi ao Centro e comprou LPs novos — alemães, com parte da obra de Mozart. Voltou bastante animado e me mostrou as compras. Eu estava lá naquele dia, para almoçar com minha madrinha recém chegada do Sul. De-de-depois do almoço vamos apre-apre-apreciar estas maravilhas. Confesso que fiquei receosa, mas me mostrei interessada e animada. Almoço maravilhoso, bobó de camarão com acaçá, aquele creme de arroz ao leite de coco, e quindão. Comi muito, repeti sobremesa — o que minha mãe dificilmente consentia. 

Barriga cheia, alegria no coração, conversava com minha madrinha, quando começamos a ouvir bo-bosta, me-merda, nã-não funciona, vindas do quarto de Cloviska. Minha avó começou a se abanar, minha madrinha se calou. Eu fui até a porta do quarto e vi meu tio chutando a eletrola. O móvel mudava de lugar, aos pulos. Ele estava descontrolado. Pegou um LP e jogou no chão, pisou em cima, arranhando a preciosidade recém adquirida. Me encolhi toda, me colei no vão da porta, só com a cabeça pra dentro do quarto. Ele escolheu outro LP, tirou lentamente de dentro da capa, levantou o braço do toca-discos e posicionou o LP no prato de metal —lugar certo —. Aí, começou a apertar botões, e nada acontecia. Apertava, xingava, subia o braço, punha a agulha no início do disco, e nada. A raiva crescendo. Alterado, ele praguejava. Eu, assustada, percebi que o fio da vitrola estava solto no chão. Os chutes dados anteriormente devem ter tirado o fio da tomada. Tentei dizer isso para ele, não consegui. Vi meu tio pegar um porrete que ele guardava debaixo da cama — uma peça em jacarandá maciço que ele tinha ganho de um índio numa das viagens ao Amazonas. Cloviska atacou a eletrola com toda força e fúria de que podia ser capaz. Os pés-palito cederam, a caixa tombou pra frente, e ele destruiu a caixa de madeira. Jogou os LPs pela janela. Xingava, gaguejava pragas que eu jamais tinha ouvido. Minha madrinha e minha avó quietas na sala, mal respiravam. 

Terminada a batalha, saiu, batendo a porta. Vovó, então, pediu à empregada que catasse tudo que ele havia jogado pela janela e sumisse com a Motorola destruída. Júlia levou os restos da eletrola para a área de serviço e só jogou fora o que estava em pedaços — pés do móvel, portas rachadas e lascas diversas. Eu inspecionei todos os discos, separei os que não estavam arranhados e levei pra minha casa. 

Dias depois, tio Zeca veio para o fim de semana e soube do ocorrido. Examinou o que tinha sobrado: rádio e toca-discos em bom estado. Mandou fazer um móvel novo e remontou tudo, refazendo as ligações elétricas. Deixou a vitrola com roupa nova, funcionando perfeitamente. 

Mas Cloviska já tinha desistido das máquinas e similares. Deu a Leica para o meu primo, um gravador portátil novinho, na embalagem original, para meu irmão mais velho, e não quis saber da vitrola que tio Zeca tinha restaurado. Ficou de localizar os manuais dos equipamentos mas foi Sergio quem conseguiu achar todos, no meio da coleção de jornais diversos que o tio mantinha em pilhas encostadas numa das paredes do quarto — os manuais amassados, com folhas soltas e algumas rasgadas. Ele nunca mais tolerou falar sobre seu acesso de fúria, não permitia um “a” sobre o assunto. A fúria toda voltava, na hora! Num desses acessos ele quebrou seis pratos do jogo de porcelana inglesa da vovó. 

Respeitamos a proibição como pudemos, mas ríamos desse episódio quando estávamos juntos. Virou piada de família e se ele desconfiasse de como nos referíamos ao “Caso Motorola” nos teria esfolado vivos. 

Tio Zeca se casou pouco tempo depois, levou a vitrola reformada para seu novo lar e se deliciou com ela por muitos anos. 

O encontro com a família Tavares, da tevê que quase me acertou, não só me acalmou como me aproximou de pessoas afáveis e cordiais. Sempre que ia ver um cliente, cujo escritório me obrigava a passar por essa rua, dava uma paradinha na casa deles para um delicioso cafezinho com direito a conversas, risos e biscoitinhos de araruta inesquecíveis. Conseguíamos rir das muitas traquinagens do velho João, que ainda viveu alguns anos depois do arremesso da tevê.

Conto do livro A Dança das Letras

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