Sendo Vica 

Depois de me encarar muito tempo no espelho, frente, perfil, bem de perto, mais de longe, aceitei as mudanças: cabelo amarrado no alto da cabeça, laço grande, bem estufado. Tive que apelar para sabão e elástico, pois meus cabelos lisos rejeitam todos os enfeites, que, tristonhos, deslizam ombro abaixo. 

Na verdade, eu estava muito estranha, não parecia em nada comigo, mas também não era exatamente como Virgínia, a prima Vica. Mesmo assim, estava determinada a copiá-la em tudo. Por quê? Queria eliminar as repreensões e castigos impostos por minha mãe quando me via voltar com o vestido sujo, muitas vezes rasgado, depois de brincar, jogar bola, pular corda à vontade na calçada. Mamãe nunca via minha alegria e satisfação, somente os joelhos ralados, as canelas roxas, os sujinhos na barra da saia e al- guns rasgões por ter sido puxada pela roupa que sempre perdia a batalha. Isto são modos?! O vestido está imprestável, não serve pra nada. A Virgínia sabe se comportar, está sempre impecável

Vica era meu inferno diário. Coitada, era boa menina. Filha única, obediente, estudava piano, vivia dentro de ves- tidos bonitos, bem rodados, com laço de fita nos cabelos. E as meias soquetes? Tinham rendinha franzida! Bonito, tudo bem bonito, mas… e as brincadeiras? Como será que ela brincava? Numa coisa eu sabia que era melhor do que ela: nas notas na escola. Afinal, eu era uma das primeiras da turma. 

Bem, estava tentando ser igual a ela, só que de cabelos lisos pois os dela eram bem crespinhos. Ah! Ela, estrábica, usava óculos. Não dá para copiar isso. Os cabelos poderiam ganhar permanente —mamãe fazia permanente Toni, mas era muito fedorento. Achei que não precisava chegar a tanto. Bastava ficar bem comportada, alisando o vestido toda hora, sentar com os joelhos juntinhos, e não fazer mais nada — ficar olhando as coisas acontecerem e da janela, para não ser tentada a dar uma corridinha, pegar a bola, coisas assim. 

Entrei tanto na personagem que estava até falando como a Vica: com a língua presa. Meus irmãos já tinham reparado nas mudanças e não largavam do meu pé, com piadinhas e risotas. Me deixem quieta, estou fazendo uns testes. 

Os dias passavam e minha infelicidade crescia. Não ousava fazer nada do que fazia antes e não sabia como a Vica se divertia. Minha bicicleta estava encostada, não queria correr riscos. 

Minha mãe deu um tempo nas broncas, me deixou em paz mas, pra quê? Monotonia em tudo! Não comia direito, não conseguia nem me alegrar com meus desenhos e minhas bonecas de papel. Só na escola eu continuava a ser eu mesma, não queria notas baixas e nem criar confusão onde tudo dava certo pra mim. 

Mas ser Vica era difícil, a vida tinha ficado muito chata. Ser eu mesma era bem mais fácil. 

Um domingo, eu estava indo vicamente almoçar com minha avó, a um quarteirão de distância, quando passei pela turma jogando queimado. Os campos marcados com giz no asfalto, e as crianças na maior gritaria. E eu, de vestido de organdi rosa pálido, com anáguas armando a saia, e o tufo de cabelo engomado com sabão, exibindo um laço enorme de seda rosa. A garotada parou o jogo quando cheguei perto. Perguntaram se eu ia à missa ou a alguma festa. Respondi que tinha almoço de família, e continuei em frente. E levei uma bolada bem no meio das costas. Caí, estatelada num canteiro próximo. A gradinha que cercava as plantas espetou minha coxa esquerda: saiu sangue. O vestido já era. Rasgou na cintura e ganhou uns esverdeados na saia, bem na frente. E sangue escorrendo pela perna. Uma vizinha apareceu e me ajudou: lavou a ferida com sabão, água oxigenada, fez curativo. Lavei o rosto, as mãos, e avaliei os danos. Tinha que voltar para casa, trocar de roupa e me preparar para a bronca. 

Sabia que mamãe não estava. Tinha saído um pouco antes de mim para ajudar a preparar a comida. Na falta de um vestido pronto, lavado e engomado, escolhi um conjunto de short e blusa, de listinhas vermelhas. O curativo ficou aparecendo, mas eu nem liguei. Que vejam, foi um acidente. Fiz um rabo de cavalo, com elástico, calcei sandálias, bati a porta e saí. Não queria passar pelos meus amigos novamente, então, dei uma volta e peguei uma rua paralela. Tomei um susto. Vica e Lucília brincavam sentadas no degrau do portão de um edifício, os vestidos acomodados ao redor delas, e várias bonecas espalhadas na calçada. Elas serviam chá em pequenas xícaras, as mãos com gestos delicados, dedinho mindinho esticado e tudo. Que tédio. 

Mudei de calçada para não ter que falar com elas. Entrei na rua da minha avó e passei direto pela portaria, pegando o caminho de volta para casa. Fui até onde a turma estava jogando. Pedi para entrar no jogo. Pulei, corri, suei, me descabelei até que a empregada da vovó me achou e disse que estavam me esperando, o almoço já na mesa. Só falta você. Me despedi do pessoal e segui de queixo erguido.

Conto do livro A Dança das Letras

 

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