O creme 

O que é que tem levar um pote de creme pro serviço? Já expliquei tudo pra supervisora, ela não contou pro senhor? Saí de casa atrasada, esqueci o creme e tive que voltar. Dei sorte e peguei a van das cinco. Não, não estou inventando descul- pas. Sei que perco a hora muitas vezes, moro longe. Levanto no escuro e faço um montão de coisas antes de sair. Deixo tudo adiantado pra minha filha: almoço, troco pro ônibus, mochila pronta, uniforme passado. Ela tem sete anos. Não, ela não fica sozinha. Minha mãe tá lá. Mas o creme é pros pés da pacien- te do quarto dezessete. Ela tá mal, coração fraco, no oxigênio o tempo todo. Nem banho pode mais. Ontem os pés dela tavam dormentes e eu fiz massagem – pele grossa, muito seca. Aí me lembrei do creme que minha avó fazia. Claro que ela sabe que não sou enfermeira. Fica me olhando enquanto limpo o quarto. Acho que queria fazer o que eu faço. Mas tá fraca. O senhor me desculpe, hospital é horrível. Tô nisso por necessidade. É, po- dia trabalhar em casa de família, mas é encrenca, uma prisão. Tenho filha me esperando, preciso de horário certo. Gosto de falar com a doente do 17. É a única coisa boa naquele andar. A do 19 é uma canseira. Se queixa de tudo: ar condicionado mui- to frio, muito quente, vento direto na cabeça, controle remoto do ar não funciona, o da tevê também não. Não consegue usar o telefone. Tudo funciona, ela é que bate os dedos de qualquer maneira e não consegue nada. As enfermeiras não aguentam mais. Não estou inventando, elas me disseram. A mulher chama toda hora pra nada. Às vezes, eu atendo. Ela não fica sozinha. É filha, filho, nora, acompanhante, todo mundo se virando pra ela ficar quieta. Desconfia dos remédios, diz que não precisa daquilo. Mas respira mal, coração disparado. Não dorme, é só nos cochilos. A do 17 sorri quando entro. Oro por ela pra que se recupere. É grave. As duas tão muito mal. O creme? Pois é, logo hoje o motorista me largou mais longe. Consegui bater o cartão no último minuto, tive que correr. Nem deu pra eu tomar café. A supervisora veio logo pra cima de mim e quis saber qual era a do creme. Só porque estava num pote de maionese? Expliquei tudo pra ela. Mas ficou com o creme e me escalou pro quarto andar. Trabalhei direto até o almoço. Comi rápido e fui pegar o creme de volta. Não tinha ninguém na supervisão, fui na mesa dela e peguei. É meu. Aí a supervisora chegou e armou essa con- fusão. Posso ir no 17 agora? Ah! Tem certeza? Puxa, e eu nem fiz a massagem… E a do 19? Jura?! Tá melhorando. Injustiça. Vai a jovem e fica a velha que já viveu pra caramba. A moça nem chegou aos trinta. É, o senhor tá certo. Isso não vai mais acontecer. O creme?! Pode ficar, não preciso mais. 

 

Conto do livro A Dança das Letras

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