Helena 

— Chegou cedo. Deu formiga na cama?

Helena nem respondeu, um olhar bastava. O porteiro que pensasse o que quisesse.
Entrou no elevador e subiu ao décimo quinto andar. Entrou no apartamento. Silêncio e penumbra. Acendeu a luz da cozinha e foi trocar de roupa. Ficou um bom tempo no banheiro: escovou os dentes, lavou o rosto e tentou encontrar um pouco de ânimo e confiança, mas estava péssima. Vou preparar o café. Queria oferecer para sua patroa um café da manhã digno de novela de TV. Tirou o pão de queijo do freezer e arrumou as bolinhas na assadeira. Ligo o forno às sete. Descascou frutas e cortou em cubinhos para uma salada que serviria com iogurte fresco e coado, espesso como os patrões gostavam. Arrumou os frios numa travessa: presunto, blanquet de frango e peito de peru. Para o cestinho de palha foram fatias de pão integral com sementes de girassol. O queijo de Minas só na hora. Aí, espremo as laranjas pro suco. 

Caprichou na arrumação da mesa: louça florida combinando com a toalha de linho rosa.

E Helena foi se ocupar pois não queria ficar de olho no relógio, esperando que a patroa aparecesse.

Regou as plantas, afofou as almofadas dos sofás e tirou pó dos móveis. Voltou para a cozinha, ainda eram seis horas. Varreu, passou pano no chão, lavou louça, guardou copos e pratos da noite anterior. Trabalhar, trabalhar para não pensar.Vou passar roupa, e começou pelas camisas, umedecendo as de algodão. Passava e pendurava nos cabides para que esfriassem antes de serem dobradas, evitando assim novas rugas ou vincos.

Mais uma consulta ao relógio: sete e meia, e a patroa dormindo. Roberta costumava acordar às oito ou oito e meia. Gostava de demorar na mesa do café, lendo o jornal e fazendo as palavras cruzadas do dia.

Oito horas. A mesa do café continuava intocada. O patrão tinha viajado na véspera e só voltaria no final da semana. Sem ele em casa seria mais fácil conversar e tentar conseguir o que queria da patroa. A empregada só tratava de determinados assuntos com Roberta. Sabia o que esperar da patroa. Primeiro ela se aborrecia, a voz ficava mais grave e vinham os sermões. Listava todos os pedidos feitos anteriormente e as promessas não cumpridas de que tais cenas não se repetiriam. Helena sabia que a patroa ia dizer isso me causa muito desconforto, me faz mal, não sou responsável por seus problemas pessoais e nem por sua família. Quero uma profissional competente dentro da minha casa. Deixe seus problemas lá fora ao vir para o trabalho. Mas Roberta acabava cedendo. Ficava uns dois dias fria e distante e depois tudo se normalizava.

Hoje, mais do que nunca, Helena precisava que ela cedesse. Acabou de dobrar a última camisa. Foi tratar das verduras que tinham vindo do sítio. Lavou alfaces, rúcula e agrião. Secou as folhas e guardou nos saquinhos de abrir e fechar – como a patroa gostava. Fechado o último saquinho, viu que ainda eram nove e meia. Cadê Dona Roberta? Será que não está em casa? Pé ante pé foi até a porta do quarto da patroa e ouviu o som do ar condicionado ligado. Certa de não estar sozinha no apartamento, voltou para a cozinha e tomou um copo de café com muito açúcar. Sentiu-se tonta. Decidiu tomar um banho frio para espantar o mal-estar.

Roberta se levantou às dez. Tomou banho, cuidou do rosto e dos cabelos, vestiu-se e foi tomar café.

Na copa, viu a mesa posta, o rádio tocando música suave, o jornal dobrado. Chamou Helena, mas não teve resposta. Procurou-a na sala, mas não a encontrou. Deve ter ido à padaria. Roberta sentou-se para tomar café e se desligou de tudo à sua volta. Quando o telefone tocou, se assustou de tão absorta que estava. Era o marido. Conversaram um pouco, se desejaram bom-dia, beijinhos e até mais. Deu-se conta do adiantado da hora – quase meio-dia e nada de Helena. Desligou o rádio e só então ouviu um barulho de chuveiro aberto. Vinha do banheiro de empregada. Bateu na porta, chamou Helena, mas só se ouvia água correndo. Assustada, interfonou para o porteiro pedindo ajuda. E foi um auê. Arrombaram a porta do banheiro e encontraram Helena caida no chão. Chamaram uma ambulância, mas era tarde. Um enfarte fulminante tinha acabado com a vida da empregada que há mais de vinte e cinco anos servia à família.

Polícia, perícia, enterro, choro dos filhos de Helena, promessas de ajuda, todos os capítulos que fazem parte dessas mortes súbitas foram sofridos por Roberta e seu marido.

Passados uns dias, era hora de abrir espaço para uma nova contratada. Vou mandar as coisas de Helena para os filhos. E foi um joga fora isso e guarda aquilo que durou horas. Exausta, Roberta chegou à última peça: o uniforme que Helena usava no dia de sua morte. Tinha ficado pendurado no banheiro. Roberta olhou para o vestido desbotado, sem rasgos ou costuras desfeitas e com todos os botões. Imaginou Helena dentro dele, sentindo falta daquela cara redonda, muito preta e com olhos de jabuticaba. Viu uma ponta de folha de papel num dos bolsos. Era um bilhete. Imediatamente reconheceu a letra irregular e os erros de português:

Dona Roberta descupe mais essa é mais uma tentativa minha desesperadora e utima da minha vida já que não consigo falar. Eu estou me espressando escrevendo. Eu hoje tenho que voltar pra minha casa. A senhora nem sabe estou sem dormir em casa a uma semana com medo dos cobradores. Só a senhora pode me ajudar, pelo amor de Deus. Se não pagar hoje eles vão me matar ou fazer mal a um dos meus filhos. 

Dona Roberta, em nome de Deus eu farei tudo que a senhora ordenar, serei sua eterna Helena e não peço mais nada nessa vida. Pelos nossos filhos que Deus já levou, eu te suplico e eu pagarei da melhor forma e nunca mais comprarei uma agulha sem te pedir autorização. Me perdoe minhas fraquezas, meus erros e me ajuda hoje e eu farei tudo que me pedir. Leia e me da a resposta hoje eu trouse o documento eu prometo nunca mais falar de problema ou qualquer coisa só se a senhora me perguntar. 

Roberta abraçou o vestido da empregada. Um entendimento doído, misturado com tristeza, impotência e arrependimento, a invadiu por inteiro.

(página 97 do livro de contos A Dança das Letras, memórias e histórias)

 

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