Os chinelos

Um dia, acordei sufocada, pesada. Uma sensação de culpa imensa tinha me tomado, sem volta e sem perdão, e me colava na cama. A ponta de um sonho ainda estava na minha lembrança, algo raro. Meus sonhos costumam fugir de mim quando acordo. Chego a vê-los me abandonando e o esquecimento se  instalando. Mas, naquela manhã, a culpa ficou e com ela vieram lembranças antigas, de mais de trinta anos: os chinelos de papai caídos no jardim com as solas viradas para cima — azar maior impossível.

E me voltaram tempos de criança, e minhas práticas sagradas do dia a dia: desvirar sapatos e chinelos por ventura emborcados, não passar sob escadas e desviar o olhar caso surgisse um gato preto na frente. Tudo para não atrair a má sorte. Não adiantou. Numa tarde de domingo, janela do banheiro aberta, quis ver a rua e esbarrei nos chinelos de meu pai sobre o batente da janela. Eles caíram no jardim com as solas para cima. Voei escada abaixo, mas as  portas trancadas me travaram. Todos os alarmes de perigo zoavam na minha cabeça — faça algo, rápido, o azar está chegando. Mas, meus pais estavam dormindo e as chaves com eles. Vi As janelas do primeiro andar abertas e suas belas grades de ferro batido que impediam entradas, ou saídas de emergência. Daqui a pouco eu desviro os chinelos — mas acabei me esquecendo —.  A tarde se foi entre brincadeiras com meus irmãos. Veio a segunda-feira com a ida à escola, deveres de casa, mais brincadeiras, e no dia seguinte, às dez e meia da manhã, papai morre em um acidente aéreo. Não desvirei os chinelos a tempo! Esse pensamento me invadiu, encheu  minha cabeça assim que soube do desastre.

Reagi à culpa e à notícia da morte de meu pai criando algo que nos salvasse, a mim e a ele: amnésia. Em meu enredo interior, papai não tinha morrido no acidente. Estava perdido, sem saber quem era e sem se lembrar de nós. Um dia voltaria para casa. Era só esperar. E como esperei, quieta e calada, sem nunca contar sobre os chinelos pra ninguém.

Deixamos São Paulo de volta ao Rio. Fomos para a casa de minha avó materna na Tijuca, e de lá para a Urca. Eu tinha seis anos quando ele morreu e até os doze alimentei esperanças de que ele iria voltar. Quando a campainha de nosso apartamento tocava eu achava que era ele, finalmente.

Até que um dia precisei de um documento pedido pelo meu colégio. Mamãe não estava em casa e eu resolvi pegar a certidão numa pasta que ela guardava no guarda-roupas. A busca me colocou frente a frente com a certidão de óbito de papai. Comecei a ler e não terminei. A descrição do que foi encontrado, como ele foi identificado, acabou com minhas esperanças. Ele estava morto mesmo, sem volta. Os chinelos virados, o azar, meu feito. Fiquei desesperada, chorei muito naquela tarde.

Mamãe chegou e estranhou me ver deitada na cama, de cara para a parede. Inventei dores de cabeça, cólicas, algo assim e logo me ignoraram. Mas eu não era mais a mesma, uma tristeza enorme passou a me habitar. Minha família percebeu a mudança mas acharam que eram coisas de adolescente. Só eu sabia.

Passei a tomar o maior cuidado com tudo que fazia. Não queria provocar o azar, dar chances para ele atacar. Fui me tornando obediente ao extremo, incapaz de colar ou matar aulas, procurando acertar em tudo porque se  algo acontecesse, eu poderia dividir a responsabilidade com os adultos que me mandavam fazer isso ou aquilo, proceder dessa ou daquela maneira. Vejo meus irmãos conversarem sobre “artes” que fizeram na adolescência e eu nada tenho para contar. Não transgredi, nem fila de cinema eu furei.

Aceitei o peso, o mal estar e saí da cama para tratar da vida. Era um dia de verão, teríamos convidados para um churrasco e eu com muito a fazer. Mergulhada nas tarefas, mal senti as horas passarem.

  Deixei Marido, filhos e amigos no pátio, cervejando e conversando, de olho na carne sendo assada e eu, na cozinha, preparando os acompanhamentos: farofa, molho à campanha, arroz e salada. Sem perceber, comecei a falar comigo, o que faço muito quando fico sozinha. Conversa vai, conversa vem, quando vi estava falando com meu pai. Ele encostado na pia, de braços cruzados,  me olhando picar tomates. Eu falava das crianças, de cismas do meu marido e, de repente, papai me interrompe: Filha, esquece os chinelos emborcados. O avião  ficou sem controle. Foi um acidente.

    A cena está viva em minha mente. Vejo, com detalhes, a roupa que ele vestia: camisa branca de mangas curtas; calça cáqui de pregas na cintura e bainha inglesa; sapatos marrons e meias brancas. Ele me fitava com ternura. E assim ficou por um tempo — calado e me olhando.

  Eu com a faca no ar, lábios entreabertos, olhos arregalados, fui sendo inundada por um entendimento quente que me acalentava, enquanto a imagem de papai foi se desfazendo lentamente, e a culpa me deixando.

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