-
Momento vivido
Hoje de manhã, atrasada e pensando no que teria de enfrentar nas próximas horas, uma voz suave me trouxe de volta para onde eu realmente estava e devia estar: em casa e com o neto em apuros. — Vó, meu dever de casa está confuso. Pedi a ele que lesse o enunciado da questão. Ele leu em voz alta: “acrescente uma letra às palavras abaixo e crie novas palavras”. Ele tinha criado bamba ao inserir um ‘m’ entre as duas sílabas de baba e queria saber se essa palavra existia. — Existe sim. — Mas o que é bamba?, ele perguntou. — Já vamos descobrir, disse, enquanto alcançava meu ‘Aurélio’…
-
Dogs do Dan
Daniel precisava de grana. Tinha namorada, queria fazer programas e se divertir. Mas, sem dinheiro? Tentara entrar para a Marinha, sonho de criança. Se via na Banda dos Fuzileiros Navais, tocando seu sax-tenor dourado que a patroa da mãe lhe dera há cerca de quatro anos. Mas, não conseguira ser convocado e já passara da idade para tentar exames ou concursos para qualquer carreira militar. Tinha ouvido falar de músicos que tocavam no metro ou em esquinas do Centro ganhando algum trocado dos passantes. Só que ele não tinha para as passagens. Sua mãe gastava oito reais por dia de condução indo e vindo do trabalho. Muito dinheiro! Onde morava…
-
Os nomes dos personagens em Madame Bovary
Em sua introdução à edição de Madame Bovary do “Le livre de Poche” da Hachette (2000), a professora e ensaísta Béatrice Didier levanta pontos interessantes sobre a importância da escolha/criação do nome da personagem principal, da heroína do romance. Ela afirma que a escolha do nome de um personagem é um ato capital. É com esse nome que o autor vai cristalizar todas as suas frases e palavras fazendo com que este ser, inicialmente de papel, ganhe vida e nos dê a ilusão de estar vivo, de ser real. Ela diz que Flaubert foi muito feliz ao encontrar e aproximar duas palavras: Emma e Bovary. O nome Emma está impregnado de sonhos…
-
Menina, cão, quintal, família feliz
O que dizer desta fotografia? Vejo crianças, um cachorro, e casas. Uma menina, bem à vontade junto ao cão, cuida de conter o animal. Toca-o como que pedindo que obedeça e colabore para que sua agonia acabe e ele possa sair do lugar da obediência e da submissão. E ele procura sinais de agrado no dono, o fotógrafo, que o posicionou e ordenou que ficasse sentado naquele lugar. Só meu pai tinha voz de comando sobre o cão. Sou a menina solícita. Me acostumei a ver desde muito cedo as imagens colecionadas por minha mãe em um álbum intitulado My Book Treasure. É um grande álbum marrom de…
-
O presente
Noite fria, muito escura. Nós três, os maiores, grudados, bem juntinhos, sentados no primeiro degrau da escada. O menor passava pra lá e pra cá no colo da babá apressada, arrumando coisas, pegando roupas nossas no quarto dos fundos, no andar de cima, pela casa. Não sei bem o que ela fazia, mas estava muito ocupada. Nossa casa cheia e continuando a se encher de pessoas solenes, sérias. Umas conhecidas e muitas outras não. Onde estava minha mãe? Continuava sumida. Tínhamos voltado do colégio e ela não tinha aparecido para nos receber. Eu ouvia seu choro, mas quando a procurava só via as costas de mulheres encurvadas olhando para algum ponto…
-
“Hibisco Roxo”, a tirania do colonizado
A leitura de Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie, nos revela um livro interessante que trata de colonização e seus efeitos sobre os colonizados: opressão, medo, extremismo religioso e cizânia entre e dentro de famílias. O livro fala também da incompatibilidade na solução de continuidade entre a Nigéria colonizada e a Nigéria independente. Há dificuldades em relação à coexistência dos antigos valores nativos – reprimidos pelos colonizadores – e os valores adquiridos/impostos pelo longo tempo de colonização. Por terem sido assimilados, tais valores adquirem força na nação independente e encontram espaço para existirem “livremente”. A luta pelo poder político continua a existir na Nigéria independente, em detrimento da democracia e da liberdade de pensamento…
-
O ardor de uma escrita
O escritor Sandor Márai nasceu na Hungria em 1900, época em que era forte o nacionalismo, sentimento fundado tanto na fidelidade às próprias origens quanto numa lealdade quase absoluta à pátria. Tanto uma quanto a outra estão presentes no General Henrik, personagem principal de seu romance As Brasas, objeto dessa resenha. Ainda jovem e sem fazer parte de nenhum grupo literário, Márai tornou-se um dos expoentes de destaque da narrativa húngara: a crítica o definia como um mestre do estilo, o público o adorava e seus livros eram sucesso de vendas. Essa época, que vai de 1920 a 1948, aproximadamente, é a única em que Márai conviveu com o sucesso. Em…