• Ensinamentos

    Na casa de minha mãe era difícil ter voz própria, expressar opiniões, sair do lugar da obediência quase cega. Um tio meu abriu meus olhos para as múltiplas vozes, para entender que através da palavra escrita se podia ter liberdade e ir longe. Usei esse poder no colégio, em dissertações e questões de interpretação de textos. Aderi a um clube de Amigos por Correspondência que me possibilitou escrever cartas para desconhecidos, pessoas de outros países e culturas. Me correspondi durante muito tempo com um rapaz de Malta. Treinei meu inglês e passei a conhecer uma pessoa inteligente e culta, com senso de humor e aguçado espírito crítico. Mas, tempos depois,…

  • Desnorteada

    Ando desnorteada, sem compreender o que me acontece e sobretudo o que não me acontece.  Há poucos dias fiz 80 anos. Vida longa, que não pode ser tão longa quanto eu gostaria. Isso assusta. Desde então, não consigo trabalhar direito. Não que tenha abandonado meu ritual de trabalho: escritório arrumado, notebook ligado, e músicas tranquilas como pano de fundo. Ah, e gotas de determinados óleos essenciais no vaporizador para despertarem o prazer de criar. Mas, não está dando certo.  Ter ideias nunca foi difícil para mim. Elas me invadiam, eu as seguia. Com enredos infantis, inventava histórias que brotavam com a maior facilidade.  Não mais! Porquê?  Já escrevi, mentalmente, crônicas…

  • Há cafés e cafés

    Você já percebeu  que todo mundo tem uma opinião sobre como fazer café? Há os que juram que a prensa francesa é a única maneira de fazer um bom café. Aí vem a turma do café expresso que acha que não se deve sequer olhar para um bule de café coado. Café em garrafa térmica então? É um sacrilégio. E os que só admitem café coado com água a exatamente 90 graus? Fico pensando: no final das contas, não estamos todos apenas tentando acordar? E o que dizer das máquinas de café? Umas têm cara de nave espacial. Botão para tudo! Um botão para moer, um botão para aquecer, um…

  • Carta a Raquel de Queiroz

    Estimada Raquel,  Quem te escreve não é a fanzoca desejosa de contato com a grande escritora. Quero estar contigo por termos algo em comum — o meu pai, Clovis. Ele, amigo do teu irmão Flávio, frequentou tua casa, o Sítio do Pici, pois a família dele tinha ficado no Acre quando ele foi estudar em Fortaleza aos12 anos. Passou nos exames para o Colégio Militar e lá fez amizade com teu irmão, ambos alunos internos.  Bom estudante, cheio de vida e amante de esportes, com um futuro pela frente — não longo como o esperado, infelizmente. Seguiu a carreira militar como oficial da Aeronáutica. Dos 4 aos quase 6 anos…

  • No caminho

    A lagoa está deslumbrante hoje. O espelho d’água sem nenhuma ondulação, nada que interrompa sua serenidade. Queria tanto ficar aqui, absorvendo a calma que ela generosamente oferece. Mas o dentista me espera. Vou deixar a tranquilidade para encarar a expectativa de dor numa cadeira desconfortável. Ele pode ser a pessoa mais gentil do mundo mas, em seu consultório, é meu algoz.  Para mim não existe ida ao dentista sem dor, seja ela física ou mental. Sinto-me tensa. Vou me concentrar na caminhada até o consultório. Talvez me acalme.  Praça N.S da Paz, enfim! Vou cruza-la para cortar caminho e me encantar com a beleza do verde e o aroma das…

  • Delírios, servem pra quê?

    Dizer que meu coração sangra é lugar comum, mas eu sou um imenso lugar comum: o do sangramento, da dor, da perda, do impacto acachapante de ser um projeto não realizado e sem tempo pra ser iniciado.  O que ouvi ontem rompeu meus diques, trouxe à tona a lama contida, inerte, pegajosa. Tudo que não resolvi, que fingi não ver me inundou. Um gosto amargo arde na minha garganta. Mal consigo respirar. Acumular tanto lixo, pra quê? Quero vomitar tudo isso num jato só. Me esvaziar, me limpar.  Mas, afundo na areia movediça que, aos poucos, me consome. Ela manda, se impõe, me envenena e paralisa.  Sou mole, frouxa, como…

  • Sozinha

    Ouço o que dizem — “está só, que pena, tão bonita”. Nada disso! Estou acompanhada das desgraças que me habitam, das desgraçadas que me cercam, e das graças que não me atingem, que flutuam à minha volta até que a brisa as leve. Não me queixo, sou formada em abandono. Sou como mobiliário de rua: pra ser visto, usado e posto de lado. Há os que querem me “salvar, proteger, e abrigar…”. Fujo deles, querem me prender! Já sou presa dos desejos dos outros, mas não sou presa fácil.  Há impulsos que pareço tolerar. Finjo pra me defender, e pra ter o que comer. Bem sei o que é  fome…

  • Os chinelos

    Um dia, acordei sufocada, pesada. Uma sensação de culpa imensa tinha me tomado, sem volta e sem perdão, e me colava na cama. A ponta de um sonho ainda estava na minha lembrança, algo raro. Meus sonhos costumam fugir de mim quando acordo. Chego a vê-los me abandonando e o esquecimento se  instalando. Mas, naquela manhã, a culpa ficou e com ela vieram lembranças antigas, de mais de trinta anos: os chinelos de papai caídos no jardim com as solas viradas para cima — azar maior impossível. E me voltaram tempos de criança, e minhas práticas sagradas do dia a dia: desvirar sapatos e chinelos por ventura emborcados, não passar…

  • Conveniências

    Padre, quero me confessar. Não estou à beira da morte e nem mal da cabeça. Estou velha, só isso. Pequei, errei, é hora de acertar as contas. Não sei quanto tempo mais tenho por aqui, já-já me chamam para o andar de cima. Católica? Sim, fui. Não se espante, explico. Tive todo o preparo, instrução religiosa mas, lá pelas tantas, parei de praticar. Não que tenha perdido a fé, ela se voltou para um Deus sem igreja. Esse é um dos meus pecados, bem sei. Padre, por favor me dê esse tempo, quero me confessar conversando. Sei que concordou em me ver nesse quarto onde moro. Preciso que me ouça.…

  • Em algum lugar

    — Acho que você deve dar uma olhadinha nisso aqui  — Guidobaldo estendeu o jornal para o amigo. — Não, deixa pra lá, Guido. Não quero me aborrecer mais. Nada vai mudar coisa alguma. E não importa, na verdade não importa. O que é já é, vai ser e sempre será. — Mas Gali, é o Papa, ele falou para um público enorme lá na Terra. — Há sempre um Papa falando para um público enorme de ignorantes… — Mas é diferente, é importante. É o Papa João Paulo II se retratando em público. Ouça, preste atenção: “1992, Ano dedicado à Astronomia. 31 de outubro de 1992, a Igreja revê…