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Sendo Vica
Depois de me encarar muito tempo no espelho, frente, perfil, bem de perto, mais de longe, aceitei as mudanças: cabelo amarrado no alto da cabeça, laço grande, bem estufado. Tive que apelar para sabão e elástico, pois meus cabelos lisos rejeitam todos os enfeites, que, tristonhos, deslizam ombro abaixo. Na verdade, eu estava muito estranha, não parecia em nada comigo, mas também não era exatamente como Virgínia, a prima Vica. Mesmo assim, estava determinada a copiá-la em tudo. Por quê? Queria eliminar as repreensões e castigos impostos por minha mãe quando me via voltar com o vestido sujo, muitas vezes rasgado, depois de brincar, jogar bola, pular corda à vontade…
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O creme
O que é que tem levar um pote de creme pro serviço? Já expliquei tudo pra supervisora, ela não contou pro senhor? Saí de casa atrasada, esqueci o creme e tive que voltar. Dei sorte e peguei a van das cinco. Não, não estou inventando descul- pas. Sei que perco a hora muitas vezes, moro longe. Levanto no escuro e faço um montão de coisas antes de sair. Deixo tudo adiantado pra minha filha: almoço, troco pro ônibus, mochila pronta, uniforme passado. Ela tem sete anos. Não, ela não fica sozinha. Minha mãe tá lá. Mas o creme é pros pés da pacien- te do quarto dezessete. Ela tá mal,…
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De fósforo e fogo
Tati terminou de coar o café. Esperou que o marido se sentasse à mesa antes de se juntar a ele. Cadê o pão? Ela ia falar que era dele a tarefa de pegar os pães na padaria da esquina. Desistiu. Não queria mais brigas. Levantou-se, foi até a porta da casa ao lado e pediu dois pães. Com o depois reponho, Linda, tão frequente nos últimos dias, voltou para o banquinho da cozinha. Calados, terminaram a primeira refeição do dia. Ele saiu para o trabalho dizendo para ela não salgar o feijão, para engomar suas camisas brancas de novo, e para achar seus óculos de leitura. Não encontro nada na…
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Ao vento
De quem é isso?, balbuciou Heloísa, parando de repente, hipnotizada pelo que via no secador de roupas. Uma minúscula peça solitária dominava o ambiente ascético da área de serviço — uma tanga de renda vermelha. Se não era dela, só podia ser da empregada. A cabeça de Heloísa entrou num rodopio acelerado, com milhares de pensamentos se sucedendo, ilógicos e incoerentes: Cida tem uma bunda enorme, é barriguda, uma eterna grávida, uma fodida que mora longe, cria três filhos sem marido, não tem grana para luxos, não tem tempo pra essas coisas, não pensa – PARA, PARA, PARA! Cida tem lingerie sexy, transa legal o seu corpo quarentão e faz…
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A Dança das Letras
Aprendi a ler e a escrever com cinco anos e sem a ajuda de ninguém. Não que me lembre de tal proeza. É que aceito como minhas muitas das lembranças que os mais velhos me passaram — preciso ter um passado. Então, não me lembro do seguinte: lia, escrevia e desenhava bem, desde muito pequena. Morávamos em São Paulo — papai, mamãe, eu e um tio que tinha ido para lá estudar Artes Gráficas. Eu o adorava e sempre dava um jeito de ficar por perto enquanto ele trabalhava em capas de livros, cartazes e folhetos publicitários, cercado de lápis de cor, tintas e pincéis. Era tudo fascinante. Para que…
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É Hoje!
Alheia a tudo que não tivesse relação direta com a exposição que seria inaugurada dentro de poucos dias, Petra estava quase incomunicável. Marido e filhos já conheciam a mulher em plena imersão artística, desenvolvendo e finalizando trabalhos, acompanhando de perto as cópias feitas pelo laboratório e, uma vez aceitas, orientando a montagem – fotos em cor sem passe-partout nem moldura. Nada de adereços que desviam o foco do que o trabalho é e quer expressar. Esta mostra tem como tema o feminino e ela, que sempre trabalhou com o corpo feminino, decidiu por em cheque a questão do nu frontal num conjunto de cinco vulvas em close, imensas e coloridas.…
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Vermelho
— Tri-co-tar! Eu?! “Um grande remédio, … você vai ver como é bom, funciona mesmo” — odeio a voz desse geriatra. Grudenta, um carrapato. Aliviar tensões, bah! A tensão toda passa pra essas drogas de agulhas. Desestressar… Um bosta esse médico. O tempo todo sorrindo. Pra suavizar os diagnósticos? Sei que estou deprimida, ansiosa. Sei que preciso de ajuda. Fui ao consultório pra quê? Ai! Merda, espetei meu dedo … Vamos lá: dez pontos na agulha, ponto malha na ida e ponto avesso na volta. O fio passando pelo pescoço. Desajeitada, errando muito, Magnólia enfrenta o novo aprendizado. Uns dias pela manhã, outros à tarde, mas, a maioria das vezes,…
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Helena
— Chegou cedo. Deu formiga na cama? Helena nem respondeu, um olhar bastava. O porteiro que pensasse o que quisesse. Entrou no elevador e subiu ao décimo quinto andar. Entrou no apartamento. Silêncio e penumbra. Acendeu a luz da cozinha e foi trocar de roupa. Ficou um bom tempo no banheiro: escovou os dentes, lavou o rosto e tentou encontrar um pouco de ânimo e confiança, mas estava péssima. Vou preparar o café. Queria oferecer para sua patroa um café da manhã digno de novela de TV. Tirou o pão de queijo do freezer e arrumou as bolinhas na assadeira. Ligo o forno às sete. Descascou frutas e cortou em…
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A demora
No dia em que fiz sete anos, nos mudamos para uma vila no Engenho de Dentro, e conheci o Seu Zezinho. Quer dizer, primeiro vi a cadeirinha de balanço e só depois o Seu Zezinho. Foi assim: entramos na vila e percebi a pequena cadeira de balanço na porta de uma das casas. Só depois é que vi um homem pequeno enfiado na cadeirinha de criança. Era uma vila com uma rua central e quatro casas de cada lado. A nossa era a segunda do lado ímpar, colada na da cadeirinha. Larguei meu casaco em cima de umas caixas de papelão e deixei meus pais tratando da mudança. Só pensava…
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À deriva
Noite fria, muito escura. Nós três, os maiores, grudados, bem juntinhos, sentados no primeiro degrau da escada. O caçula passava pra lá e pra cá no colo da babá apressada, arrumando coisas, pegando roupas nossas no quarto dos fundos, no andar de cima, pela casa. Não sei bem o que ela fazia, mas estava muito ocupada. Nossa casa cheia e continuando a se encher de pessoas sérias. Umas conhecidas e muitas outras não. Onde estava minha mãe? Continuava sumida. Tínhamos voltado do colégio e ela não tinha aparecido para nos receber. Eu ouvia seu choro, mas quando a procurava só via as costas de mulheres encurvadas olhando para algum ponto…