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A mala
Pilar relutando em entrar no seu ateliê? Seu lugar de voos criativos, da concretização de sonhos e desejos… Muito estranho. Ela ultimamente chega a sentir náuseas só de se imaginar lá dentro. Há mais de uma semana vem deixando o que quer que precise fazer lá dentro para o dia seguinte. Mas não há mais dia seguinte… O apartamento foi vendido, quase todos os cômodos foram esvaziados, as coisas a serem mantidas já estão encaixotadas, prontas para a mudança. Só falta o pequeno quarto. Não quero entrar, ela estará lá me encarando. Está aqui há dez anos. Não me acostumo com isso. Entro nesse quartinho e a vejo rígida, no…
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Tempus fugit
Taís adora apreciar as cerejeiras em flor. A estradinha interna do sítio está ladeada por massas de miúdas flores cor-de-rosa. O contraste desses vários tons com o céu azul é forte. As nuvens chegam a doer na vista de tão alvas. A falta de poluição e a secura do ar resultam em cores bem definidas, intensas. Ela caminha pelo gramado acompanhada por seus dois cães. É sempre assim: ela vai, eles vão atrás. Até que um movimento diferente ou um cheiro instigante faça com que eles saiam em disparada e sumam mata adentro. Voltam arfando, às vezes molhados, mas satisfeitos com a aventura secreta. Pedem carinho se esfregando nas pernas…
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Tempo quente
Dia quentíssimo, mais de 35 graus. Até o asfalto tá mal, derretendo. Eu e ele. Ar condicionado não dá conta nesse para e anda. Eu, aqui no volante, pra lá e pra cá há horas. Hoje só passageiro chato, gente enfezada. Querem me ensinar o cainho! Estou careca de saber tudo sobre o Rio, Zona Norte e Zona Sul. Dá vontade de gritar “nasci aqui, porra!” Vou me segurar. Por muito menos, joguei passageiro pra fora. O carro é meu, fica quem eu quiser. Não aguento mais. Bandeira dois, ganho mais, mas não dá, com esse calorão não dá. O trânsito tá uma merda, todo mundo nas compras ao mesmo…
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Bola pra frente
Desde que nasci, o futebol me persegue. Não poderia ser diferente, sendo filha de Seu Everardo, um flamenguista doente que usava vermelho e preto até na hora de dormir. Papai nasceu num subúrbio do Rio, num enclave rubro-negro. Passou a infância jogando bola na rua. Driblava muito bem e tinha uma pontaria certeira. Aos dezoito anos, foi trabalhar numa fábrica de sabão na Penha. Em pouco tempo, era o artilheiro do time. Viveu seus dias de glória jogando pelo Penhão. Mas não conseguiu se profissionalizar, como era seu sonho. Antes de papai conhecer minha mãe, sua vida se resumia ao trabalho e às peladas no campinho do bairro. Algumas idas…
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Cloviska
Andava eu por uma rua tranquila do subúrbio, daquelas que fazem a gente se lembrar como se morava antigamente. As casas antigas, com pequena varanda na entrada, ornadas com samambaias choronas, as longas folhas encortinando os arcos e filtrando nossa possibilidade de ver o que acontecia em seus interiores. O perfume de jasmins, manacás e rosas vinha me acompanhando, transformando uma caminhada sob o sol num passeio delicioso pelo passado. Parecia que eu estava na minha rua no Grajaú, meu cenário de infância, nos idos anos cinquenta. Embevecida, navegando em meu passado despertado pela rua, seu casario e seus aromas, escapei de ser atingida, talvez fatalmente, por uma tevê arremessada…
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A lei é clara
Sala pequena de paredes sujas, descascadas, com enor- mes manchas de umidade. A única janela existente estava trancada. A persiana velha e rota não impedia a entrada do sol forte, cortante, inclemente. Primeira vez de Ana numa delegacia. Não sabia porque a tinham levado para lá. Apesar de tudo, o que a preocupava, naquele momento, era ter faltado ao trabalho. Corria o risco de perder esse serviço justamente quando tinha conseguido faxina para todos os dias da semana. Não teve escolha. A polícia a apanhou bem cedo, no final do primeiro trecho de sua caminhada. Ana acordou às quatro e meia, como todos os dias. Depois de se arrumar no…
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Sendo Vica
Depois de me encarar muito tempo no espelho, frente, perfil, bem de perto, mais de longe, aceitei as mudanças: cabelo amarrado no alto da cabeça, laço grande, bem estufado. Tive que apelar para sabão e elástico, pois meus cabelos lisos rejeitam todos os enfeites, que, tristonhos, deslizam ombro abaixo. Na verdade, eu estava muito estranha, não parecia em nada comigo, mas também não era exatamente como Virgínia, a prima Vica. Mesmo assim, estava determinada a copiá-la em tudo. Por quê? Queria eliminar as repreensões e castigos impostos por minha mãe quando me via voltar com o vestido sujo, muitas vezes rasgado, depois de brincar, jogar bola, pular corda à vontade…
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O creme
O que é que tem levar um pote de creme pro serviço? Já expliquei tudo pra supervisora, ela não contou pro senhor? Saí de casa atrasada, esqueci o creme e tive que voltar. Dei sorte e peguei a van das cinco. Não, não estou inventando descul- pas. Sei que perco a hora muitas vezes, moro longe. Levanto no escuro e faço um montão de coisas antes de sair. Deixo tudo adiantado pra minha filha: almoço, troco pro ônibus, mochila pronta, uniforme passado. Ela tem sete anos. Não, ela não fica sozinha. Minha mãe tá lá. Mas o creme é pros pés da pacien- te do quarto dezessete. Ela tá mal,…
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De fósforo e fogo
Tati terminou de coar o café. Esperou que o marido se sentasse à mesa antes de se juntar a ele. Cadê o pão? Ela ia falar que era dele a tarefa de pegar os pães na padaria da esquina. Desistiu. Não queria mais brigas. Levantou-se, foi até a porta da casa ao lado e pediu dois pães. Com o depois reponho, Linda, tão frequente nos últimos dias, voltou para o banquinho da cozinha. Calados, terminaram a primeira refeição do dia. Ele saiu para o trabalho dizendo para ela não salgar o feijão, para engomar suas camisas brancas de novo, e para achar seus óculos de leitura. Não encontro nada na…
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Ao vento
De quem é isso?, balbuciou Heloísa, parando de repente, hipnotizada pelo que via no secador de roupas. Uma minúscula peça solitária dominava o ambiente ascético da área de serviço — uma tanga de renda vermelha. Se não era dela, só podia ser da empregada. A cabeça de Heloísa entrou num rodopio acelerado, com milhares de pensamentos se sucedendo, ilógicos e incoerentes: Cida tem uma bunda enorme, é barriguda, uma eterna grávida, uma fodida que mora longe, cria três filhos sem marido, não tem grana para luxos, não tem tempo pra essas coisas, não pensa – PARA, PARA, PARA! Cida tem lingerie sexy, transa legal o seu corpo quarentão e faz…