• À Sombra dos Dias

    São seis. Sempre seis… Sentam-se como quem ocupa um posto sagrado. No banco da praça, todos os dias às nove e meia da manhã, se alinham sob a sombra desenhada de galhos. A árvore não tem folhas, só braços. Mesmo sem abraçar ninguém, projeta sua presença sobre aqueles corpos gastos. É outono no rosto deles. É outono nos galhos nus. Parecem não ter pressa. — O Doutor  está atrasado. Inaceitável. Digo em voz alta, sem elevar o tom. Pontualidade é, para mim, um valor inegociável. Chegar após o segundo sino da igreja é um deslize de caráter. Mas eles não reparam nisso. Aceitam tudo, riem. A disciplina nos salva da…

  • A Casa que Ficou 

    Pedaços de tijolo sob o sol, parte de um telhado destelhado contra o céu, e algumas paredes cansadas, teimosas, de pé. Na cozinha, sobre uma mesa de fórmica de cor irreconhecível, o desenho de uma planta baixa com traços quase apagados, ao lado de uma xícara imunda. Mesa manchada, xícara lascada, paredes mofadas — como desejos interrompidos. Silêncio, espesso, denso. Sobre a pia coberta de poeira, pratos com restos de molho, um copo de plástico com canudo colorido. Ao lado da entrada, um carrinho de mão com a roda murcha. No chão, respingos de cimento seco e restos reveladores de massa virada manualmente sobre o piso de tijolos de barro…

  • Minha língua mãe

    Minha língua mãe, o português, é herança. Chegou por aqui dura e engomada, e, ainda bem, foi por nós suavizada. Seus sons se abriram, adoçando os ouvidos e ganhando ritmo mais alegres, leves e divertidos.  Gosto do que herdei. Uso e abuso, e os empréstimos me contentam. Uns ficam e outros se diluem, fracos e impotentes.  Ganhei palavras para me expressar ao usar. Palavras são um jogo, um bingo de letras. Se juntam e nos revelam muito de suas origens, e também determinadas épocas, as ditas datadas. Muitas caem em desuso. Outras se enraízam, e se eternizam. Meu avô, diziam, estava com surmenage. Credo! Prefiro mais estresse — obrigada, Tio…

  • O retorno do amigo perdido

    Até que enfim você chegou! —  Desculpa, me atrasei. Saí do cartório com as firmas reconhecidas e vi um sebo novo pra mim. A curiosidade me venceu, entrei — só pra apreciar seu interior, sentir o cheiro dos livros. Foi a melhor coisa que fiz. Encontrei um amigo que não via há tempos.  — E ficou de conversa… — Ah, foi um feliz acaso. — Acaso? Desde quando você acredita nisso?  — Chame de destino, se preferir. Recuperei um grande conhecido, isso sim. — E quem é ele?  — Você não vai acreditar. A conversa esquenta. Ela fala com brilho nos olhos. Seu amigo se cala, curioso. Tira da bolsa…

  • A mala  

    Pilar relutando em entrar no seu ateliê? Seu lugar de voos criativos, da concretização de sonhos e desejos… Muito estranho. Ela ultimamente chega a sentir náuseas só de se imaginar lá dentro.  Há mais de uma semana vem deixando o que quer que precise fazer lá dentro para o dia seguinte. Mas não há mais dia seguinte… O apartamento foi vendido, quase todos os cômodos foram esvaziados, as coisas a serem mantidas já estão encaixotadas, prontas para a mudança. Só falta o pequeno quarto. Não quero entrar, ela estará lá me encarando. Está aqui há dez anos. Não me acostumo com isso. Entro nesse quartinho e a vejo rígida, no…

  • Tempus fugit

    Taís adora apreciar as cerejeiras em flor. A estradinha interna do sítio está ladeada por massas de miúdas flores cor-de-rosa. O contraste desses vários tons com o céu azul é forte. As nuvens chegam a doer na vista de tão alvas. A falta de poluição e a secura do ar resultam em cores bem definidas, intensas.  Ela caminha pelo gramado acompanhada por seus dois cães. É sempre assim: ela vai, eles vão atrás. Até que um movimento diferente ou um cheiro instigante faça com que eles saiam em disparada e sumam mata adentro. Voltam arfando, às vezes molhados, mas satisfeitos com a aventura secreta. Pedem carinho se esfregando nas pernas…

  • Tempo quente

    Dia quentíssimo, mais de 35 graus. Até o asfalto tá mal, derretendo. Eu e ele. Ar condicionado não dá conta nesse para e anda. Eu, aqui no volante, pra lá e pra cá há horas. Hoje só passageiro chato, gente enfezada. Querem me ensinar o cainho! Estou careca de saber tudo sobre o Rio, Zona Norte e Zona Sul. Dá vontade de gritar  “nasci aqui, porra!” Vou me segurar.  Por muito menos, joguei passageiro pra fora. O carro é meu, fica quem eu quiser. Não aguento mais. Bandeira dois, ganho mais, mas não dá, com esse calorão não dá. O trânsito tá uma merda, todo mundo nas compras ao mesmo…

  • Bola pra frente 

    Desde que nasci, o futebol me persegue. Não poderia ser diferente, sendo filha de Seu Everardo, um flamenguista doente que usava vermelho e preto até na hora de dormir.  Papai nasceu num subúrbio do Rio, num enclave rubro-negro. Passou a infância jogando bola na rua. Driblava muito bem e tinha uma pontaria certeira. Aos dezoito anos, foi trabalhar numa fábrica de sabão na Penha. Em pouco tempo, era o artilheiro do time. Viveu seus dias de glória jogando pelo Penhão. Mas não conseguiu se profissionalizar, como era seu sonho.  Antes de papai conhecer minha mãe, sua vida se resumia ao trabalho e às peladas no campinho do bairro. Algumas idas…

  • Cloviska 

    Andava eu por uma rua tranquila do subúrbio, daquelas que fazem a gente se lembrar como se morava antigamente. As casas antigas, com pequena varanda na entrada, ornadas com samambaias choronas, as longas folhas encortinando os arcos e filtrando nossa possibilidade de ver o que acontecia em seus interiores. O perfume de jasmins, manacás e rosas vinha me acompanhando, transformando uma caminhada sob o sol num passeio delicioso pelo passado. Parecia que eu estava na minha rua no Grajaú, meu cenário de infância, nos idos anos cinquenta. Embevecida, navegando em meu passado despertado pela rua, seu casario e seus aromas, escapei de ser atingida, talvez fatalmente, por uma tevê arremessada…

  • A lei é clara 

    Sala pequena de paredes sujas, descascadas, com enor- mes manchas de umidade. A única janela existente estava trancada. A persiana velha e rota não impedia a entrada do sol forte, cortante, inclemente.  Primeira vez de Ana numa delegacia. Não sabia porque a tinham levado para lá. Apesar de tudo, o que a preocupava, naquele momento, era ter faltado ao trabalho. Corria o risco de perder esse serviço justamente quando tinha conseguido faxina para todos os dias da semana. Não teve escolha. A polícia a apanhou bem cedo, no final do primeiro trecho de sua caminhada.  Ana acordou às quatro e meia, como todos os dias. Depois de se arrumar no…