• Entre Partidas e Chegadas

    A data…sempre volta, todos os anos. Mais um aniversário, ainda bem. Hoje, sábado de manhã. Acabei de acordar. Penso na minha cama, no meu travesseiro, na minha casa. Meus netos vão estar lá! Vamos conversar, brincar, soprar as velas do bolo. Excitados, sorridentes vão ganhar presentinhos. Certamente me darão beijos e abraços, é sempre assim. Saudades. Já já chegarei. Estou no minúsculo banheiro de um Boeing. Já escovei os dentes, penteei os cabelos. Agora lavo o rosto e as mãos. Lavo as mãos de quê? Do que fiz, do que não fiz; do que vi, do que não vi; de tudo. Quem é essa aí no espelho? Minha avó?! Estou…

  • Meu paladar pirracento

    Meu paladar pirracento Há problemas pessoais muito profundos, bem sei. Dos meus, o pior é meu paladar pirracento. Sim, estou sempre em luta com ele — que se acha no direito de decidir quais sabores são suportáveis e quais os insuportáveis. Isso é intragável! E eu, como fico? Tenho, por exemplo, uma péssima relação com cominho. Basta ouvir o nome dessa desgraça que minha boca seca, a língua se retrai, os lábios cerram. Nada entra, e há o perigo de algo indesejável sair. Bastam mínimos grãos desse tempero se intrometerem para meu prato virar um território minado. Já tentei fazer as pazes. Fechei os olhos, inspirei fundo, deixei umas sementes…

  • Amor! Amor

    Dizem que o primeiro amor é o colo quente da mãe. Mas desse não lembro, ainda não havia para mim a linguagem. Talvez fosse forte, mais forte do que qualquer palavra que só viria depois. Exigência? Lógica? Inexistiam. Esse primeiro amor nada pede, nasce atrás dos olhos fechados. De corpo pequeno, amava coisas — sim, as coisas têm alma quando se desconhece as durezas do mundo. Minha bicicleta caramelo, com sainha colorida na roda traseira, era meu tesouro. Nela eu era vento, era raio, era pássaro num céu que não conhecia peso. Depois chegaram aqueles com olhos, cabelos, cheiros. Sentia um amor que não dizia, era um incêndio escondido. Ninguém…

  • Silenciando a Voz Interior

    Qualquer autor é sempre o primeiro leitor de si mesmo. Essa dupla representação os faz aceitar e celebrar contradições, buscando o prazer numa leitura que dispense clareza absoluta ou coerência. Quando me preparo para compor, já com um tema em mente, tenho questões técnicas a decidir, escolhas fundamentais que podem dar dinamismo, causar surpresa, incluir contradições — tudo em busca de uma escrita que seduza. Mas como, hoje, criar algo que reflita, sem hierarquias, tanto o deleite de quem escreve quanto o de quem lê? Uma fala interna se apossa de minha escrita. Ela corrige vírgulas, censura parágrafos “didáticos demais, parecem aula de cursinho de escrita criativa”. Sim, é minha…

  • Pedaços de vida

    Mostra de portfólio, uma chatice. Jovens vibrantes, não prontos para ouvir. Os mais viajados dão de cara com o tempo perdido, o planejado e não realizado. E os trabalhos? Retornam às suas pastas vivos, tristes e sem reconhecimento. Entre choros e risadas, um grito exausto: “não quero…não vou…não fico…mas vou. Ai! Não, não e não!” E risos dos que não sabem o que fazer com o que ouvem. Vida tecida com um pouco de tudo, ou de muito um tudo, ou de pouco um muito. Papéis entrelaçados: mulher, mãe, professora em algumas horas, artista visual em outras, dona de casa nos intervalos, viajante quando possível, espectadora incansável, sonhadora incorrigível, criativa…

  • Meus 12 cheiros básicos 

    Para mim o olfato é o sentido mais surpreendente e mais evidente… O tempo tem cheiro …momentos têm cheiro…coisas têm cheiro… e respondo a cada um de determinada maneira…amo ou odeio pelo cheiro! Francis Silrên   Podemos dizer que o olfato nos remete à volúpia e ao sensualismo, ao apetite e desejos — que podem até ser eróticos. Mas há pitadas de saudade, de muito carinho e acolhimento, de reconhecimento pelo que passamos. Só tenho a agradecer ao meu olfato. Pensando nele, pedi às minhas memórias afetivas que aflorassem, com clareza e vigor. Muitas se manifestaram, e algumas chegaram a brigar comigo ao se verem excluídas da lista dos Meus…

  • Meu Escritório, Um Mundo Sem Paredes

    Sentada à minha escrivaninha — ou talvez devesse chamá-la de mesa de surpresas — me vejo rodeada por um pequeno universo, cheio de promessas que vibram no ar. Pode parecer um espaço simples, comum, mas percebo que nele há uma entrada para um mundo sem limites, sem fronteiras, onde não há paredes a me aprisionar. Aqui, onde cada objeto se torna uma chave para outros mundos, o ordinário se transforma em extraordinário, e cada canto tem algo novo a revelar. À minha direita, minha garrafa d’água é mais que um objeto. É a companheira inseparável das tardes imersas em livros. Ela carrega comigo a lembrança de maratonas de leitura, quando…

  • Memórias à espera

    Estou de mudança para um apartamento menor. Tenho que me desfazer de um montão de coisas. Hoje enfrentarei, sem muita coragem, meus tesouros — para dar uma batida, como dizia mamãe. Nem sei mais o que eu mantive guardado por tanto tempo. Sei que são objetos especiais. Assim que abri a caixinha dos mementos, me derreti toda: decalques, borrachinhas, jogo do mico, dados, um missal em Latim de capa nacarada, um ioiô, um postal de Malta …Sempre quis ter minhas memórias inteirinhas para nunca esquecer de nada. Lembro que na adolescência passava horas entretida com minhas preciosidades. Cada uma que eu pegava me dava carinho, calor. Minha mãe achava que…

  • Enquanto Esperas

    Ela escreveu de novo. Te confiou mais uma criação. Lá no finalzinho, claro, te cita, diz que trabalha em silêncio e se guarda entre teus papéis. Os processos, fazer e refazer, parecem bastar para ela. Poético, não? Seria bonito, se não fosse trágico. Porque não é ela quem protege seus escritos. És tu. Tu escutas tudo: os suspiros, os engasgos, os risos abafados enquanto ela trabalha. Os tic-tic dos dedos ágeis que voam no teclado. Ela lê, revê e depois despeja tudo em ti, te fecha e te esquece. Ela cria e não mostra. Não tenta publicar. Diz que só sabe fazer — que não sabe se promover, muito menos…

  • Constatações

    Nunca tive tanto prazer em chegar em casa! Tirar esse vestido desgraçado que fui obrigada a usar por mais de 4 horas para uma cerimônia sem sentido. É um protocolo humilhante para as mulheres. Meu chefe disse que eu tinha que ir com “um pretinho básico”, e me entregou uma caixa. Lá estava um micro vestido! Ninguém precisava imaginar meu corpo pois tudo estava mais do que à mostra. E os homens? Com a marca do poder: terno preto e gravata. Barrigas escondidas e bem disfarçadas, enquanto eu me sentia uma mercadoria. Dois pesos e duas medidas, certo? A falecida Rainha Elizabeth se submetia a regras rígidas sem dizer um…