-
Pedaços de vida
Mostra de portfólio, uma chatice. Jovens vibrantes, não prontos para ouvir. Os mais viajados dão de cara com o tempo perdido, o planejado e não realizado. E os trabalhos? Retornam às suas pastas vivos, tristes e sem reconhecimento. Entre choros e risadas, um grito exausto: “não quero…não vou…não fico…mas vou. Ai! Não, não e não!” E risos dos que não sabem o que fazer com o que ouvem. Vida tecida com um pouco de tudo, ou de muito um tudo, ou de pouco um muito. Papéis entrelaçados: mulher, mãe, professora em algumas horas, artista visual em outras, dona de casa nos intervalos, viajante quando possível, espectadora incansável, sonhadora incorrigível, criativa…
-
Meus 12 cheiros básicos
Para mim o olfato é o sentido mais surpreendente e mais evidente… O tempo tem cheiro …momentos têm cheiro…coisas têm cheiro… e respondo a cada um de determinada maneira…amo ou odeio pelo cheiro! Francis Silrên Podemos dizer que o olfato nos remete à volúpia e ao sensualismo, ao apetite e desejos — que podem até ser eróticos. Mas há pitadas de saudade, de muito carinho e acolhimento, de reconhecimento pelo que passamos. Só tenho a agradecer ao meu olfato. Pensando nele, pedi às minhas memórias afetivas que aflorassem, com clareza e vigor. Muitas se manifestaram, e algumas chegaram a brigar comigo ao se verem excluídas da lista dos Meus…
-
Meu Escritório, Um Mundo Sem Paredes
Sentada à minha escrivaninha — ou talvez devesse chamá-la de mesa de surpresas — me vejo rodeada por um pequeno universo, cheio de promessas que vibram no ar. Pode parecer um espaço simples, comum, mas percebo que nele há uma entrada para um mundo sem limites, sem fronteiras, onde não há paredes a me aprisionar. Aqui, onde cada objeto se torna uma chave para outros mundos, o ordinário se transforma em extraordinário, e cada canto tem algo novo a revelar. À minha direita, minha garrafa d’água é mais que um objeto. É a companheira inseparável das tardes imersas em livros. Ela carrega comigo a lembrança de maratonas de leitura, quando…
-
Memórias à espera
Estou de mudança para um apartamento menor. Tenho que me desfazer de um montão de coisas. Hoje enfrentarei, sem muita coragem, meus tesouros — para dar uma batida, como dizia mamãe. Nem sei mais o que eu mantive guardado por tanto tempo. Sei que são objetos especiais. Assim que abri a caixinha dos mementos, me derreti toda: decalques, borrachinhas, jogo do mico, dados, um missal em Latim de capa nacarada, um ioiô, um postal de Malta …Sempre quis ter minhas memórias inteirinhas para nunca esquecer de nada. Lembro que na adolescência passava horas entretida com minhas preciosidades. Cada uma que eu pegava me dava carinho, calor. Minha mãe achava que…
-
Enquanto Esperas
Ela escreveu de novo. Te confiou mais uma criação. Lá no finalzinho, claro, te cita, diz que trabalha em silêncio e se guarda entre teus papéis. Os processos, fazer e refazer, parecem bastar para ela. Poético, não? Seria bonito, se não fosse trágico. Porque não é ela quem protege seus escritos. És tu. Tu escutas tudo: os suspiros, os engasgos, os risos abafados enquanto ela trabalha. Os tic-tic dos dedos ágeis que voam no teclado. Ela lê, revê e depois despeja tudo em ti, te fecha e te esquece. Ela cria e não mostra. Não tenta publicar. Diz que só sabe fazer — que não sabe se promover, muito menos…
-
Constatações
Nunca tive tanto prazer em chegar em casa! Tirar esse vestido desgraçado que fui obrigada a usar por mais de 4 horas para uma cerimônia sem sentido. É um protocolo humilhante para as mulheres. Meu chefe disse que eu tinha que ir com “um pretinho básico”, e me entregou uma caixa. Lá estava um micro vestido! Ninguém precisava imaginar meu corpo pois tudo estava mais do que à mostra. E os homens? Com a marca do poder: terno preto e gravata. Barrigas escondidas e bem disfarçadas, enquanto eu me sentia uma mercadoria. Dois pesos e duas medidas, certo? A falecida Rainha Elizabeth se submetia a regras rígidas sem dizer um…
-
À Sombra dos Dias
São seis. Sempre seis… Sentam-se como quem ocupa um posto sagrado. No banco da praça, todos os dias às nove e meia da manhã, se alinham sob a sombra desenhada de galhos. A árvore não tem folhas, só braços. Mesmo sem abraçar ninguém, projeta sua presença sobre aqueles corpos gastos. É outono no rosto deles. É outono nos galhos nus. Parecem não ter pressa. — O Doutor está atrasado. Inaceitável. Digo em voz alta, sem elevar o tom. Pontualidade é, para mim, um valor inegociável. Chegar após o segundo sino da igreja é um deslize de caráter. Mas eles não reparam nisso. Aceitam tudo, riem. A disciplina nos salva da…
-
A Casa que Ficou
Pedaços de tijolo sob o sol, parte de um telhado destelhado contra o céu, e algumas paredes cansadas, teimosas, de pé. Na cozinha, sobre uma mesa de fórmica de cor irreconhecível, o desenho de uma planta baixa com traços quase apagados, ao lado de uma xícara imunda. Mesa manchada, xícara lascada, paredes mofadas — como desejos interrompidos. Silêncio, espesso, denso. Sobre a pia coberta de poeira, pratos com restos de molho, um copo de plástico com canudo colorido. Ao lado da entrada, um carrinho de mão com a roda murcha. No chão, respingos de cimento seco e restos reveladores de massa virada manualmente sobre o piso de tijolos de barro…
-
Minha língua mãe
Minha língua mãe, o português, é herança. Chegou por aqui dura e engomada, e, ainda bem, foi por nós suavizada. Seus sons se abriram, adoçando os ouvidos e ganhando ritmo mais alegres, leves e divertidos. Gosto do que herdei. Uso e abuso, e os empréstimos me contentam. Uns ficam e outros se diluem, fracos e impotentes. Ganhei palavras para me expressar ao usar. Palavras são um jogo, um bingo de letras. Se juntam e nos revelam muito de suas origens, e também determinadas épocas, as ditas datadas. Muitas caem em desuso. Outras se enraízam, e se eternizam. Meu avô, diziam, estava com surmenage. Credo! Prefiro mais estresse — obrigada, Tio…
-
O retorno do amigo perdido
Até que enfim você chegou! — Desculpa, me atrasei. Saí do cartório com as firmas reconhecidas e vi um sebo novo pra mim. A curiosidade me venceu, entrei — só pra apreciar seu interior, sentir o cheiro dos livros. Foi a melhor coisa que fiz. Encontrei um amigo que não via há tempos. — E ficou de conversa… — Ah, foi um feliz acaso. — Acaso? Desde quando você acredita nisso? — Chame de destino, se preferir. Recuperei um grande conhecido, isso sim. — E quem é ele? — Você não vai acreditar. A conversa esquenta. Ela fala com brilho nos olhos. Seu amigo se cala, curioso. Tira da bolsa…