Crônicas

  • Ruínas que ainda respiram…

    Quando os muros subiram na Ilha Grande, não era só pedra e cimento que se empilhava. Subia ali uma ideia: a de que o erro se tranca, a de que o castigo purifica, a de que a violência tem hora, lugar e justificativa. Inaugurado no início do século XX, o presídio parecia um mundo à parte, cercado de mar por todos os lados. Mas o que se confinava ali não ficava ali. Vieram os presos políticos, os comuns, os esquecidos. As grades, os gritos, os castigos que o Estado não estampava em papel eram gravados na carne. O lugar transformou-se em campo de experimentos sociais onde a ideia de dignidade…

  • Voz Engasgada

    Odeio quando me calo e a garganta pesa como se carregasse pedras. Odeio o silêncio que me cresce por dentro feito mofo. A oportunidade vem, linda, inteira, pousa na minha frente como um pássaro — e eu não movo um músculo. Só observo, muda. Me odeio por isso. Na infância, eu sabia as respostas. As palavras estavam ali, alinhadas, esperando. Mas o peito apertava, a mão suava, e a voz sumia. Uma colega dizia o que eu também sabia, e ganhava sorrisos. Eu ficava com a mão erguida por dentro. Ninguém via. Na adolescência, doía ainda mais. O corpo crescia, o peito se armava em curvas, mas por dentro eu…

  • Cuide-se, cuidem-se

    Com a recente Pandemia, tudo sobre porque permanecer, de livre e espontânea obrigatoriedade, afastada do resto do mundo me abandonou. Suspender o regime de obediência cega aos cuide-se e mais cuide-se não foi uma escolha. Foi consequência de acontecimentos terríveis — um sobrinho na UTI com recaída da pneumonia. Não era Covid, me animei. Há tratamento, ele é jovem, vai ficar bom. Mesmo assim, me internei no lugar da preocupação e do medo. Entremeava esses estados com lembranças, orações e esperança. Toda uma existência era repassada. Saraivadas de perguntas me atingiam, sem ordem, sem critério — Ele sente muito medo? Está com frio? Melhorou? Como estará meu irmão? Como estará…

  • Amizade Fluida

    Sou a calma, a serenidade das manhãs de verão com crianças mergulhando para ver cavalos marinhos e catar os mexilhões que cozinhariam numa lata de manteiga. Para mim, tê-las perto, rindo e brincando, era um banho de prazer. Não me esqueço da noite em que a amurada ficou apinhada de gente, todos maravilhados com um incrível fenômeno da natureza: plânctons aos milhares brilhando na escuridão. Eu repleto da magia intensa da luminescência bailante. Foi quando uma menina me fisgou para sempre ao mergulhar para reger o espetáculo. Batia as pernas e as mãos, intensificando o fulgor dos plânctons sendo agitados. Rodopiava, se agitava e dizia: mãe, estou acendendo a luz…

  • “Versão Não Autorizada da Adolescente”

    Sou avó que se preocupa com os netos, com o que os atravessa, seus desvios inesperados, as infinitas possibilidades que moldam suas realidades. E, de repente, a adolescente que fui me invadiu. Meu mundo era outro. Também dividido. Dois mundos. Três, com a escola. Seguir regras? Sem problema. Gostava de aprender. Os professores entravam, todos nos levantávamos. Eles mandavam. Se quisesse perguntar algo, levantava a mão, esperava autorização. Havia respeito. Tudo bem — tinha o prazer de ver meu esforço valorizado. Em casa… difícil. Muitas broncas, castigos. Fazia de tudo pra mãe me ver, me notar, agradecer por eu ter lavado a louça… Nada. Porque tanta cara feia? Tanto desamor?…

  • O Que Resta

    Não mais beijos vermelhos a te devorar. São líquidos distantes, que escorrem sem fim, grudam, queimam, te arrancam a pele. O tato sedento a se desmanchar como voz de papel molhado entre teus dedos — e medos. A carne, de avesso sangrento, implora. Berra entre gritos e sussurros num escuro silencioso, fétido, de bafo murcho e pontiagudo que fere. Passas as mãos no corpo em brasa e areia — não mais cobertura lisa, mas poeira quente, feia, que recusa te olhar e exala repulsa. Quase desfaleces. Ela fala em língua de mofo e se veste em cor de ausência. Ainda assim, apesar de maltratada, insistes. Pedes que fique, que te…

  • Entre Partidas e Chegadas

    A data…sempre volta, todos os anos. Mais um aniversário, ainda bem. Hoje, sábado de manhã. Acabei de acordar. Penso na minha cama, no meu travesseiro, na minha casa. Meus netos vão estar lá! Vamos conversar, brincar, soprar as velas do bolo. Excitados, sorridentes vão ganhar presentinhos. Certamente me darão beijos e abraços, é sempre assim. Saudades. Já já chegarei. Estou no minúsculo banheiro de um Boeing. Já escovei os dentes, penteei os cabelos. Agora lavo o rosto e as mãos. Lavo as mãos de quê? Do que fiz, do que não fiz; do que vi, do que não vi; de tudo. Quem é essa aí no espelho? Minha avó?! Estou…

  • Meu paladar pirracento

    Meu paladar pirracento Há problemas pessoais muito profundos, bem sei. Dos meus, o pior é meu paladar pirracento. Sim, estou sempre em luta com ele — que se acha no direito de decidir quais sabores são suportáveis e quais os insuportáveis. Isso é intragável! E eu, como fico? Tenho, por exemplo, uma péssima relação com cominho. Basta ouvir o nome dessa desgraça que minha boca seca, a língua se retrai, os lábios cerram. Nada entra, e há o perigo de algo indesejável sair. Bastam mínimos grãos desse tempero se intrometerem para meu prato virar um território minado. Já tentei fazer as pazes. Fechei os olhos, inspirei fundo, deixei umas sementes…

  • Amor! Amor

    Dizem que o primeiro amor é o colo quente da mãe. Mas desse não lembro, ainda não havia para mim a linguagem. Talvez fosse forte, mais forte do que qualquer palavra que só viria depois. Exigência? Lógica? Inexistiam. Esse primeiro amor nada pede, nasce atrás dos olhos fechados. De corpo pequeno, amava coisas — sim, as coisas têm alma quando se desconhece as durezas do mundo. Minha bicicleta caramelo, com sainha colorida na roda traseira, era meu tesouro. Nela eu era vento, era raio, era pássaro num céu que não conhecia peso. Depois chegaram aqueles com olhos, cabelos, cheiros. Sentia um amor que não dizia, era um incêndio escondido. Ninguém…

  • Silenciando a Voz Interior

    Qualquer autor é sempre o primeiro leitor de si mesmo. Essa dupla representação os faz aceitar e celebrar contradições, buscando o prazer numa leitura que dispense clareza absoluta ou coerência. Quando me preparo para compor, já com um tema em mente, tenho questões técnicas a decidir, escolhas fundamentais que podem dar dinamismo, causar surpresa, incluir contradições — tudo em busca de uma escrita que seduza. Mas como, hoje, criar algo que reflita, sem hierarquias, tanto o deleite de quem escreve quanto o de quem lê? Uma fala interna se apossa de minha escrita. Ela corrige vírgulas, censura parágrafos “didáticos demais, parecem aula de cursinho de escrita criativa”. Sim, é minha…