Memórias à espera

Estou de mudança para um apartamento menor. Tenho que me desfazer de um montão de coisas. Hoje enfrentarei, sem muita coragem, meus tesouros — para dar uma batida, como dizia mamãe. Nem sei mais o que eu mantive guardado por tanto tempo. Sei que são objetos especiais.

Assim que abri a caixinha dos mementos, me derreti toda: decalques, borrachinhas, jogo do mico, dados, um missal em Latim de capa nacarada, um ioiô, um postal de Malta …Sempre quis ter minhas memórias inteirinhas para nunca esquecer de nada. Lembro que na adolescência passava horas entretida com minhas preciosidades. Cada uma que eu pegava me dava carinho, calor. Minha mãe achava que era mania boba, então eu escondia meus amores no meu armário. Num dia de faxina, voltei do colégio e a vi escarafunchando meus pertences. Ela me olhou e disse Tua caixa de Pandora, não é? Eu não entendi nada.

Com raiva, me sentindo invadida, corri para o meu tio, nosso vizinho, que foi maravilhoso. Me falou de Mitologia Grega, explicando que a primeira mulher que Zeus enviou à Terra, Pandora, desobedeceu as ordens do Titã e abriu a caixa que carregava.  Dentro dela, os deuses tinham colocado um arsenal de desgraças: a discórdia, a guerra, a inveja, a dor e todas as doenças do corpo e da mente. Lá embaixo, bem no fundo, havia um dom oculto: a esperança, que não pôde sair, pois, Pandora, assustada, fechou tudo rapidamente. Fiquei chocada com essa história terrível. O quê meus badulaques tinham a ver com desgraças? Só tinha objetos amados que me faziam bem. Tentei falar disso com mamãe. Ela me interrompeu com: Pelo menos aprendeste algo de mitologia. Assunto encerrado.

Ah, mas eu reabro o assunto a cada visita à caixinha de mementos. Acabei de encontrar algo muito especial: uma anotação num pedacinho de papel, com minha letra rococó. A emoção me levou às lágrimas. Voltei ao dia em que, na casa de meu tio, fui ao banheiro e logo notei algo diferente: um versinho colado no aquecedor a gás. Era a época de aquecedores dentro do banheiro. Antes do banho se acendia o piloto, se ajustava a alavanca de temperatura e voilá, banho quente garantido. Meu tio, cansado de encontrar o aquecedor com o piloto aceso, tinha escrito:

SE VOCÊ TEM ALERGIA AO BANHO DE ÁGUA FRIA,

TOME UM QUENTE SEM TEMOR.

MAS, AO SAIR DO CHUVEIRO, PENSE NO MEU DINHEIRO

E DESLIGUE O AQUECEDOR.

Ah! Que lembrança boa! Versinho que motivou muitas risadas, mas que resolveu definitivamente o problema.

É, as boas memórias não nos deixam, nos esperam em nossas caixinhas.

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